Na peça, misturaram com destreza as doçuras do relacionamento com as crianças, os percalços de um ofício que não é só flores, a crítica a palhaços de hospitais bem intencionados, mas insensatos, e a denúncia ao descaso com a saúde pública geratriz de profissionais frustrados e desumanizados.
Ao final do espetáculo, tivemos o prazer de ouvi-los responder às nossas perguntas. Respostas polêmicas que comentamos aqui particularmente duas.
Confessamos que por aqui éramos palhaços de muito improviso. Aprendemos a ser assim. Não tínhamos o palhaço como profissão e revelamos nossa falta, muitas vezes, de “cartas na manga” para sairmos de ou entrarmos em situações difíceis.
A
Responderam que o treinamento era necessário. Eles tinham reuniões semanais com trocas de experiência e auto-capacitação, estudando também teorias que lhes fizessem entender o significado do trabalho deles. Falaram que era ciência o que faziam.
Em um documentário recentemente divulgado, já tinha ouvido a afirmação e re-afirmação dos Doutores da Alegria em querer deixar claro que fazer o que faziam não era só inspiração e dom, mas engenho e esforço. Não era mágica.
A
Essas falas seguem um discurso de uma civilização moderna que quis romper com um antigo regime de privilégios divinos (pré-moldados) e sangue azul para fazer surgir a democracia do mérito. Mais importante que a revelação era a experimentação racional da natureza. E como símbolo dessa emancipação: a ciência.
Percebemos, contudo, que a ciência, embora revolucionária e criadora de uma nova forma de lidar com a realidade, se tornou tirana da verdade e, democrata que era, passou a assumir o poder sobre o que deve ser e o que não deve ser o que se vê, ou pior, o que se vive. Alertou um dia Cecília na sua Anatomia: “E’ triste ver-se o homem por dentro: / Tudo arrumado, cerrado, dobrado/ Como objetos num armário.
A
“A alma, não.”
A
Porque palhaços teriam essa pretensão de querer ser científicos se eles têm mais que isso: arte?
O cotidiano da nossa ciência revelou-se a serviço da manutenção de uma realidade já vista. Uma realidade que havia sido descoberta com a ousadia de seres inspirados que deram pulos mágicos para alcançar a originalidade. A ciência só veio preencher os espaços que separavam o gênio da média da humanidade.
A
A arte – e o gênio é artista – não prova realidade nenhuma. Materializa uma realidade que ainda não existia, mas que o espírito entrevia nas malhas de seu coração.
A
A segunda crítica vai a como alguns deles abordaram a identidade do trabalho que exerciam no hospital.
A
Quando lhes perguntavam, numa abordagem bem monótona, se achavam, sim, que a alegria era o melhor remédio. Respondia-se que não. Que o melhor remédio era ter remédio no hospital, ter exame no hospital, ter papel para enxugar a mão no hospital. Quando lhes perguntavam se o palhaço era figura essencial no hospital. Respondia-se que não. Que em um hospital bem administrado, com profissionais bem remunerados e com pessoas que fizessem bem o seu trabalho, o palhaço não precisava entrar. E quando lhes perguntavam se eles estavam ali para dar amor. Era dito que não. Que o médico estava para dar a medicina dele e eles, a arte.
A nossa Dra. Tampinha, em uma conversa particular, havia concordado que eles haviam dito certo para a realidade deles. Contudo, para nossa realidade de meros estudantes metidos a palhaços, o amor, já que nossa arte é pífia, era ferramenta primeira. E última.
O amor, todavia, é ferramenta primeira, e última. Para qualquer realidade!
Luc Ferry, filósofo contemporâneo francês, escavou uma pesquisa feita pelo Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) daquele país, revelando que “mais de 50% dos franceses fizeram doações em 1994, chegando a um montante global de 14,3 bilhões de francos, o que representa um aumento de 50% se comparado com 1990”(2). Um quarto dos doadores era isento de imposto de renda, só para acrescentar a imagem da caridade per se e não pelo desejo de desconto fiscal.
O que pareceria, a priori, o aumento da caridade no mundo, analisa Ferry, pode não representar bem a essência do amor. É fácil que uma população razoavelmente estável dê um pouco do seu excedente para somar bilhões sem nenhum sacrifício. A força da parábola de Jesus sobre a viúva que deu de si o que lhe faltava sobrevive como um arquétipo da humanidade que quer mais do que esmola para amar dignamente o próximo.
É verdade que precisamos de meios materiais para realizar um trabalho digno. O que sentimos, de outro modo, é que isso não basta. Não nos basta realizar uma boa medicina ou fazer rir com boa arte, se não tiver amor...
A
Não deveríamos, junto com o governo de privilégios, ter jogado fora tudo o que nos escapasse o controle (o crepúsculo dos ídolos). O amor é dessas realidades arredias que nos surpreende apaixonados e nos faz realizar coisas irracionais, mas cheias de graça. Há amor no palhaço. O amor é desses espíritos que nos tomam e nos fazem cuidar do outro sofrido. Há amor na medicina.
A
Se somos movidos com razão para a construção de um mundo melhor, com não menos razão nos entregamos a essa luta por amor.
A
De outro modo, citando a palhaça do grupo Dra. Leonoura: "Hay que pegar la veia, perder la ternura jamás!".
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(2) FERRY, Luc. trad: Jorge Batos. O Home Deus ou O Sentido da Vida. 2ª edição. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007.
Allan Denizard