sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Como é difícil ser palhaço

“Como é difícil ser palhaço”, eu dizia para todos os meus amigos enquanto estava na minha capacitação. Desde julho, fui jogada em um mundo novo, no qual o objetivo não era mais alcançar, e, sim, tentar. A ponte do sucesso, que nós, seres humanos, sempre tentamos chegar ao final, não era mais para ser atravessada. Nós deveríamos ficar no meio, nós deveríamos ser a ponte entre dois mundos, ou pelo menos foi isso que entendi depois de tantas incógnitas que foram colocadas na minha cabeça. A vida que eu conhecia não era mais a mesma. Como assim eu teria que pular corda de olhos fechados? E se caísse? Como assim teria que dançar com um lenço de papel? Lenços não dançam! Foi dessa forma que o Y entrou na minha vida, desconstruindo tudo o que eu havia construído.
Depois de muita preparação, chegou a tão temida “Primeira Visita”. Em meio a vários Colegas-Y, todos imersos em uma aura de expectativa e ansiedade , coloquei minha roupinha listrada de branco e vermelho, meu sapato colorido, meu laço enorme na cabeça e, por fim, o nariz rubro (colocado num mar de pancake e tinta). “Voilà”! Tinha me transformado na Doutora Amêndoa. Pelo menos no exterior, porque no interior eu continuava a Amanda que tinha medo de errar, que tinha medo de não ser engraçada o suficiente e que temia não cumprir sua missão, que era ser ponte.
A visita começou meio capenga, comigo quase em desespero, buscando loucamente a ajuda de meus colegas. “Oi, tudo bom com você?”, era o que eu falava para tentar quebrar o gelo, mas nem sempre era o suficiente. Eu via o ambiente mudar, mas porque estava sempre com meus colegas que faziam seu trabalho mais do que satisfatoriamente. Sentia o peso nas minhas costas, a expectativa das pessoas para que eu falasse algo divertido e que fosse levar algum conforto ali naquele meio hospitalar tão cinza. Eu queria fugir, queria tirar a maquiagem e voltar a ser eu mesma, comum e imperceptível. Depois de algum tempo, porém, o jogo começou a virar.
Uma mãe me chamou, junto com a Doutora Crystalina, para animar sua filha. “Por que você está triste?”, nós perguntamos, e ela, com pesar nos olhos, nos respondeu “não posso andar”. Por um segundo, eu congelei. O que eu poderia dizer que fosse consolar essa menina? Aí que Crystalina entrou, e, logo depois, eu entrei junto, jogando conforme o que era necessário naquela situação. Um sorriso começou a ser formar no rosto da nossa “paciente” e começamos a ver a sua mudança de humor. Tínhamos conseguido! Fizemos a diferença naquele dia, e, se tivesse ido embora ali, já estaria satisfeita.
O melhor de tudo é que permaneci. A partir daí, só vieram flores. Subimos para ver mais crianças, e elas, como se soubessem do meu aperreio, estavam bastante animadas somente com a presença de palhaços ali. Não era preciso que eu fizesse muito para poder fazer parte do mundo delas. Brinquei de pega-pega nos corredores do hospital com Vitor, batizei o Pou da Cássia, me surpreendi com o forte aperto de mão do Wesley. Além disso, fiz concurso de dança e assisti a uma menina jantar enquanto conversava com ela. No fim, como se fosse a cereja do bolo, uma das crianças chega até mim e diz “vocês vão voltar, não é?”. Com essa pergunta, não importava mais se o começo da visita não tinha ido como o planejado, eu tinha cumprido minha missão ali.
Naquele dia, entendi que o palhaço é muito mais do que eu imaginava. Entendi que meu jeito pragmático de ser talvez me atrapalhe a alcançar o significado do que realmente é estar ali de nariz vermelho, mas que, com certeza, não deixarei de tentar ser a ponte entre a angústia e o sorriso.

“Como é difícil ser palhaço”, eu afirmo agora depois de ter vivido na pele.

Ruiva

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Sobre a primeira visita (e talvez um pouco mais)



Ultimamente, percebi que tendo a gostar mais de observar cenários do que de participar deles. Prefiro assistir à vida alheia a ser a estrela da minha. Essa é minha zona de conforto, em que apenas sou espectadora do espetáculo de terceiros. E, (in)felizmente, o palhaço Tenta me tirar dela.
Isso é o que amo e odeio nele. 
Minha primeira visita resumiu-se em tentativas. Tentar me sentir à vontade com o peso do nariz vermelho, que antes já me derrubara. Tentar não chorar de nervosismo. Tentar entrar em sintonia com algum dos outros tantos palhaços que lá estavam: uns pulavam, dançavam e se sentiam à vontade com as crianças; outros não entendiam as brincadeiras e perdiam a voz em meio ao fuzuê. E eu no meio de tudo isso, olhando, me juntando à plateia e aplaudindo meus companheiros. Com a certeza de que estava fazendo tudo errado, de que, se fosse para só assistir, podia muito bem ter ido de Amanda, sem a necessidade de me montar. E isso foi me trazendo um nervosismo antigo, uma sensação de não pertencer. De ser "outsider".
E aí houve a quebra. 
Os antigos acharam ruim, pois tivemos que "sair" do palhaço. Mas e quem nem tinha entrado? Para mim, foi um momento de alívio. Alívio de não mais ver o Dindim, mas o Vanildo. Não mais a Relogynho, mas a Rafa. Foi a hora de conseguir respirar com calma, de confessar para alguém que não tava rolando para mim, de inspirar fundo e de procurar coragem para voltar ao hospital. 
E, nessa volta, o dia se salvou. Ao nos separarmos nos andares do Sabin, fiquei com três palhaços com quem não imaginava ter tanta sintonia, em especial uma com um pitó no alto da cabeça que olhava direto para o relógio e agitava umas maracas. 
Houve momentos ruins e tensos, quando arrancaram meu nariz, e me joguei no chão porque não conseguia respirar, por exemplo. Mas também existiram aqueles que me fizeram ter vontade de continuar, como risadas e brincadeiras com pessoinhas miúdas e não-tão-miúdas e cumplicidade com meus colegas palhaços, quando nos olhávamos com surpresa, nossos olhos dizendo "caramba, tá rolando!".

Minha relação com o palhaço nunca foi de liberdade ou de espontaneidade, mas de desafio, de desconstrução e de ansiedade. Desafiar minha timidez e minhas limitações. Desconstruir meus conceitos de ridículo e minha necessidade de não passar vergonha. Ficar ansiosa pelo desconforto causado por tudo isso. 
Depois da primeira visita, porém, devo acrescentar a essa lista Gratidão e sensação de Querer Mais. Agradecer às crianças e aos outros palhaços pelos empurrõezinhos de incentivo (ou não) que recebi. Querer sentir cada vez mais tudo o que sinto quando coloco minha roupinha e meu nariz, seja algo bom ou ruim. 

Preta. 

Sobre descobrir a liberdade: primeira visita

Todos pensamos que somos livres. Ô pobres mortais iludidos, não sabem que a sua volta estão presos em diversos tipos de amarras. Amarras sociais, econômicas, geográficas, lingüísticas, profissionais, amarras emocionais. A todo tempo nos prendemos em algo e parte de nós fica estática vendo a vida passar sem se adaptar. Nascemos e somos criados sempre em busca de grupos e pertencimentos, procuramos agradar, buscamos nos encaixar e vivemos na esperança de sermos aceitos. Todas as nossas atitudes são guiadas por padrões fixos e determinadas por um alguém que nem sabemos quem é. Você não pode falar alto em público, você não pode usar listrado com bolinha, você não pode usar meias diferentes em cada pé, você não pode sair por aí com a cara pintada, você não pode sentar no chão sujo, você não pode. Quantas vezes não já ouvimos isso? E desde quando isso é liberdade?
Vetar é fácil demais, difícil mesmo é ter coragem de ir contra o veto. Um dia eu conheci alguém que teve essa coragem. Coragem de ser livre em todos os âmbitos. Antes de conhecê-la, eu não imaginava que ela fosse assim. Não esperava que tudo acontecesse tão naturalmente e que nosso encaixe fosse ser tão sincrônico. No dia que resolvi ser Preguiça, descobri que se eu pudesse, seria Preguiça todos os dias da minha vida. Nessa viagem de quem eu sou e quem ela é, vivenciei momentos onde não existia o não pode. Eu pude dizer que morava numa casa debaixo da terra, pude convidar todas as pessoas pra uma festa no endereço Lagoa dos Porcos esquina com Lagoa das Vacas, pude dizer que estava calçando a Peppa e o George, eu pude vender bolsas que vinham do Beco da Poeira francês, pude dizer que não sabia andar de elevador, pude acreditar que se eu falasse bem alto o elevador me levaria pra onde eu quisesse, eu pude gritar, pular, fazer estrelinha sem tocar no chão, pude me aterrorizar ao ouvir a história da loira do banheiro, pude chorar ao ouvir ordens, pude dizer que a segurança era invejosa e que a recepcionista me achava linda. Eu pude dançar forró como se estivesse matando formiga, pude receber autógrafo no braço e passá-lo adiante, pude brigar com os médicos que passavam, pude vender uma caixa de nariz que transformava centavo em real, pude vender um espelho que multiplicava a beleza, pude perguntar a qualquer pessoa da minha frente se eles tinham uma cama pra eu deitar. Eu pude fazer o que eu queria e falar qualquer coisa, pude agir como se todos os julgamentos tivessem sidos dizimados e como se padrão nenhum guiasse minhas ações. Eu pude esquecer tudo que tinham me dito antes sobre palhaços serem alegres e engraçados e pude ser uma palhaça com olheiras, cara de sono, que não estava animada pra brincadeira, mas que queria muito um lugar pra deitar. Eu pude jogar com o inesperado, com o novo, pude ver reações inúmeras e inventar alguma coisa para cada uma delas. Sim, nesse momento eu descobri o que realmente significa a palavra liberdade.
Em meio a tantas outras interferências e tantos outros mundos correlacionando-se com o meu, eu me encontrei. Hoje o que desejo pro meu futuro é continuar nessa montanha-russa onde eu me escondo pra encontrar a Preguiça e me encontro pra escondê-la. As percepções desse primeiro encontro são as melhores, com certeza iremos nos ver mais vezes com muito prazer. Com a reação dos outros sobre o que eu estava fazendo, eu não me importo. Apenas me preocupo com o que fui e o que pude ser. Hoje sigo com a certeza que eu descobri algo que não teria sido descoberto de outra forma. Independente do sucesso geral da visita, ela foi extremamente importante pra que eu tivesse a certeza de que esse é o meu caminho. Na volta pra casa, os olhos se encheram de lágrimas e o sofá da minha casa sentiu minhas mãos suadas e tremendo. Eu consegui. Isso não significa que eu atingi um objetivo, mas sim que eu consegui não atingir objetivo nenhum. E mais que isso, consegui não me importar. Consegui lapidar a real liberdade de vestir um nariz vermelho e poder ser livre. Eu e a Dra. Preguiça estamos num nível de relacionamento onde tudo são flores. Ainda que isso mude ou não permaneça sempre assim, eu vou sempre lembrar que um dia, ela me ensinou que EU POSSO.
Eu fui a Dra. Preguiça, ela já é parte de mim e de agora em diante serei livre.  

Juliana Medeiros

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Primeira visyta

Foi tanta coisa misturada que eu nem sei por onde começar. De primeira rezar pra que dê tudo certo, de segunda repensar na maquiagem, de terça recolocar a roupa só pra garantir que tá tudo bem, de quarta o dia que chega. Foi numa quarta-feira. Quase tão difícil pra marcar a data foi convencer a médica de que tínhamos combinado nesse dia. Começamos já com alguns “não”: Não vai entrar... Não vai visitar... Não tem muito tempo. Entramos, visitamos e olha que foi por um bom tempo! Quando todos colocaram o nariz e olhei ao redor, por um momento fiquei de plateia, assistindo as brincadeiras e pensando no que eu ia fazer. Até que fui indo, fluindo, aos poucos.

Outro “não”. Esse me quebrou um pouco. “Tá, com licença” e um empurrãozinho só pra garantir que o palhaço não vai atrapalhar aquele ambiente sério onde só se pensa em correr de um lado pro outro. Quase parei ali mesmo. Mas tudo bem né, é a vida e vai continuar acontecendo.

Passamos tanto tempo no térreo que parece que esquecemos de subir, o problema é que não tinha mais tempo.... Decidimos levar as bolsas pros carros pra podermos ficar mais. Há quem diga que esse momento foi uma quebra e que dificultou a volta pro hospital. Pois eu digo que sou grata por esse momento! Nesse caminho no meio da rua eu pude me soltar mais, brincar e me sentir começando a construir minha doutora-palhaça. Quando voltamos ao hospital entramos por outro lado onde tinha bem mais crianças e eu ouvi uma frase de alívio “ah, aqui estão as crianças!” a você que disse isso: sinto-me contemplada. Quando subimos e nos dividimos nos andares foi a parte que me fez não achar tão ruim o primeiro percurso. Existem pessoas que querem brincar em um ambiente sério onde só se pensa em correr de um lado pro outro.

Queria falar de cada coisa que aconteceu lá, mas sei que é sem condições escrever tudo aqui, então, vou me deter em duas de forma mais específica. Como relatado acima, antes de irmos deixar as bolsas nos carros, foi um momento não muito legal, eu cheguei a pensar no porquê que esse projeto existe, entenda que não era o porquê que estou no projeto, é o que fazemos demais em um hospital, quem sabe a gente só estava atrapalhando mesmo. Até que uma mãe parabenizou pelo trabalho e disse que era ótimo a gente estar ali já que antes eram elas que tinham que animar as crianças. Nesse momento eu entendi que a gente tinha sim importância ali dentro, mesmo que algumas pessoas não enxergassem. Outro ponto foi quando um menino que a mãe disse que tinha medo de palhaço deixou que eu e outra doutora-palhaça estrássemos no quarto. Foi um momento de enxergar o “sim” por detrás do “não”, colocar em prática o palhaço de hospital que não chega cuspindo fogo, ocupar os espaços chegando numa velocidade baixinha até bem pertinho do menino. Perguntar se pode continuar e a cabeça dele balançar dizendo que sim. Um sim arriscado, mas quando que o palhaço não arrisca?


Talvez um dia eu seja grata pelos “não” que eu recebi. Mas eu sou grata de verdade pelos “sim”, seja daquela funcionária que mal olhava pra mim, mas dava uma risadinha sempre que eu falava com ela, seja daquele menino que tava doido por uma disputa de dança, da menina que adorava fazer intriga e dizer que meu nariz não era meu, da tia que me prometeu um sanduíche de laranja. Do menino que me deixou chegar perto, da mãe que me devolveu o sentido do projeto que acabei de entrar.


Rafaela Medeiros

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Sobre ego

Quanto vale arrancar um sorriso?
E quanto vale enxugar uma lágrima?

Pense de novo, mas agora num hospital:
Quanto vale arrancar um sorriso de uma criança acamada?
E quanto vale enxugar as lágrimas de uma criança com dor?

Quem consegue responder? Quem se atreve a escolher?
Pera... por quê ta todo mundo olhando pra mim? Ei, parem de me encarar! EI QUEM COLOCOU ESSE JALECO EM MIM? NÃO! EU NÃO QUERO ESCOLHER! EU NÃO SEI ESCOLHER! EU NÃO TO PRONTO PRA ESCOLHER! MEU DEUS EU NÃO TO PRONTO PRA ESCOLHER!
MEU DEUS, EU NÃO TO PRONTO PRA SER MÉDICO!!!

Arf... arf... arf...

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Eu tava lá, era Sexta-Feira de tarde e era uma das minhas visitas mais divertidas em muito tempo. Todos riam de nossas piadas, de nossos pequenos números e todos pareciam nos aplaudir com seus sorrisos largos e nos incentivar a continuar a rir, cantar e... (por quê evitar essa palavra?)... estrelar. Éramos estrelas e aquele quarto de hospital era o nosso público, e todos nos aplaudiam de pé. Era bom.

Mas... todos mesmo?

Nos despedimos do quarto, ofegantes e risonhos e, só então, pela primeira vez, eu vi uma menina com dor. Ela tinha os olhos úmidos e não me respondia. Quero dizer... ela não me ignorava. Ela falava comigo quando eu perguntava. Mas ela não me respondia. Você entende? Eu tava lá! Ela também tava! Mas... não...

Se bem que... eu tinha respondido ela?

Pensei bem... eu olhei pra ela quando entrei no quarto. Eu provavelmente olhei para seus olhos úmidos. Mas eu também olhei pra olhos ansiosos e sorrisos expectantes. Resolvi, naquele momento, ver só um deles. E os aplausos de todos que eu enxergava amaciaram gentilmente meu ego. E era tão bom! Era tão gostoso! Era tão mais fácil! Meu deus, melhor visita!...

...mas agora eu tava dando tchau e eu acabei vendo ela. Mas do que olhar, eu a vi! Droga! Eu a vi! E agora, justamente agora, eu precisava ir embora! Percebi que, no mesmo quarto que eu escolhi arrancar sorrisos e gargalhadas eu também escolhi negligenciar aquelas lágrimas. Ignorar aquela dor...

- Me desculpa, ta?
Minha alma gritava. Minha boca mal sussurrou. Ela assentiu. De que adianta?

Eu queria não ter visto ela. Teria sido tão mais fácil. Por quê ela tinha que estar lá? Por quê ela tinha que sentir dor justo naquela hora? Por que ela tinha que me fazer escolher? Por que eu tive que me despedir? Por que eu só não sai, sem dizer nada...? Droga!

Mas eu realmente me sentia culpado? Se sim, por que eu ainda me sentia tão bem? Por que eu ainda tava tão agitado e empolgado?

Eu não sei.

Mas não me ataquem, por favor! Eu não tava pronto! Eu não TO pronto!!! Eu não quero ter que escolher!! EU NÃO SEI ESCOLHER!!!

Tirem esse jaleco pesado de cima de mim!!

Arf... arf... arf...

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Pior Primeira Vysyta - A Palavra Morrida

O campo gravitacional de um palhaço ondula uma Kinesfera de possibilidades desestabilizadas. Tudo lhe é permissível, pelo fato de não pertencer ao mundo das condutas padrões, expectativa de quem não pertence a esse mundo. A expectativa de quebrar a própria expectativa. Pessoas com quem nunca falei antes, às quais nunca vi, quebram minhas próprias expectativas. Elas existiam naquele momento e tudo começaria a funcionar. Finalmente chegava o momento de me vestir palhaça e construir a cena da minha Primeira Vysyta.

No início, a adrenalina me permitiu explorar alguns jogos, alguns diálogos e interações. Mas rapidamente centrei meu eixo gravitacional e me auto-desestabilizei, quando percebi que um palhaço de hospital não apenas é um ator cenário, mas também público, que transforma público em personagem e inverte os papeis. Criei a expectativa e ondulações em cima de mim mesma. De repente, aqueles rostos amórficos e desconhecidos começaram a me assustar. Precisei buscar outros palhaços para me introduzir àquele momento: apenas um reflexo de mim. Eu não tenho medo de palhaço, mas tenho medo de gente.

Assim, todos meus monstros vieram. Medo de me infiltrar em um instante da vida de alguém. Medo de incomodar. Medo de mostrar algo meu para alguém, medo de me abrir. Medo de causar qualquer reação. Medo de confiar e entregar o que eu sinto. Medo de olhar nos olhos, de receber, de tocar. Não medo de doar, mas medo de não ser recebida. Medo de falar.

Regurgitei tumores de palavras, pétreos, encravados em minha garganta, que digeriam minha voz. Qualquer som produzido por mim parecia o estrondar de garfos arranhando pratos de porcelana. Ninguém queria ouvir minha voz, nem eu mesma. Das poucas vezes que consegui falar, as palavras fugiam de mim e eu desviava minha linha de raciocínio. Tinha medo do que poderia sair de mim ao me perder na estagnação de qualquer resposta a estímulos. Entrei num vácuo interno, que não consegui dar continuidade. Em certo momento da visita, eu estava, praticamente, fazendo mímica. Ao perceber isso entrei em desespero. Eu não me fazia sentido ali. Não tinha conseguido me conectar com ninguém. A palavra havia morrido.

 Depois de algumas quebras na minha vida, eu atrofiei minhas palavras e hipertrofiei minha expressão corporal. Meu corpo sempre gritou mais alto, me resgatou e me serviu como muleta. Porém, naquela tarde, braços e ombros cada vez definhavam mais, e meu grande suporte muleta-corpo minguou. Meu sempre expansivo corpo agora chorava o luto da palavra morrida. Eu pedia socorro dentro de mim, presa na penumbra do meu corpo que barganhava e me sufocava. Queria que a Vysyta acabasse o quanto antes. Certa vez, li em algum caderno de lyções que "A palavra é quase sempre a morte do corpo. E o palhaço é o artista do corpo". Mas onde está o palhaço quando o corpo se esmorece, pelo falecimento da palavra?

Pouco menos de uma hora, parei, saí, assisti, voltei, tentei novamente, ondulei, voltei, e voltei, e voltei... O resto da Vysyta foram muitas voltas, até eu encontrar um meninozinho de seus 3 anos, que também não falava. Me escondi num chapéu, com medo de todo o poder que sua grandiosa presença tinha sobre mim. Ele riu. Nesse instante nossos corpos conversaram sem palavras. Tudo apenas na língua do “Tá, tá, tá”, que se transformou em música, dança e risadas. O encontro dos errados. Festejamos os desastres e as frustrações destilados naquele dia, até todos ficarem exaustos no chão.

E exausta no chão, permaneço para sentir cada célula minimamente afetada. Meu corpo padece, cabeça lateja, olhos ardem. Tudo o que compõe minha somática ressoa. Me banho de lágrimas solussantes. Eu me sinto viva ao que me exaure. O pesar de meus tumores me dói, mas não me encarcera: movimenta. Por isso estou aqui, para sair de meu grande aquário bolha. Por isso me visto de azul, não à toa a cor do chakra da garganta, o Vishuddha, dissolvido em turquesa pétrea de Peixes: Inspiro coragem para mergulhar nas águas do medo do universo instável das permissibilidades de um palhaço.