É um tanto obrigação para mim falar sobre o que foi nossa noite de dez anos. Não porque tenham me obrigado, mas é que necessito.
Não vê? Já se foram dez anos. Recentemente descobri que é o mesmo intervalo de tempo que me separa da última geração. Minha coluna dói na cervical e na lombar. Acordo todos os dias feito boneco de cera, e o sol vai me amolecendo. Meu joelho está com a cartilagem fissurada porque o espírito não aceita que tenhamos envelhecido, e insiste em nos fazer dançar ao máximo. É daqui que olho para este tempo passando e vejo a magreza que eu não achava que tinha e os amigos que eu não fazia ideia que eram tantos.
O projeto Y é um pedaço muito pequeno do mundo. Em uma matemática leviana, podemos contar cerca de nove gerações idas, cada qual com cerca de dez a quinze integrantes, fazendo, então, algo em torno de cem peregrinos. Foi isso que ele sempre foi para todos: uma ponte.
Nunca vou me esquecer da cena da minha infância em que brincava de bicicleta com meu primo em cima da ponte que levava para... não sei onde. Não sei para onde a ponte levava porque sempre brincávamos na ponte. Em certo momentos parávamos e íamos mijar no lago sob ela. Não havia tempo de voltar para casa. Perderíamos brincadeira. Perderíamos por quê? Não fazíamos ideia o que nos esperava adiante. Eram as meninas que namoraríamos, os estudos que se aprofundariam, a faculdade, as doenças de nossas mães, o casamento, os filhos. E, todavia, a ponte continuava ali, em nós.
Por ela, passou gente que eu mal fazia ideia do quanto eu amaria. Recentemente fiz um trabalho sobre o projeto Y, e as entrevistas foram reencontros. Outra coisa é que saímos de nós. Os que estiveram na frente daquela noite decidiram homenagear estes outros que encontramos. Encontramos outros palhaços mundo a fora que comungavam do que sentíamos. Sabe qual o sentido de comunhão, né? É um bolo que se reparte e não se acaba, porque não é divisão, é partilha.
Como dizia, este projeto é um pedaço pequeno. Vivemos dizendo que a ideia é conquistar o mundo que nos acolhe, mas todos nós, no fundo, sabemos que isso é balela. O bonito daquela festa não foi ver o quanto conseguimos nos proliferar, mas o quanto conseguimos nos unir, verdadeiramente. Reconhecer nos outros o que nós fomos, somos, seremos, queremos. Parar um pouco para mijar ali, que não havia tempo de voltar para casa. Não dava mais para voltar para casa. Não a mesma casa. Não o mesmo eu.
Allan Denizard (Dr. Acerola)