quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Oração por sorrisos confortáveis.


Hoje decidi tirar prosa com um dor meus funcionários preferidos da faculdade: o seu Ivan. Parece que ele sempre tem um discurso certo pra mim, por isso adoro doar um pouco do meu tempo pra ouvir algumas palavras dele. Quando falei do Y, ele me disse algo que mudou meu dia:

"As vezes é preciso deixar o nariz de lado e olhar no fundo dos olhos dos outros, doar carinho e mostrar que você, verdadeiramente, se importa."

Em meio a atrasos e correrias, apertamentos e tropeços, encontrei-me novamente vestida de Dra Zói de Bila, pronta para visitar meus pacientes no hospital. Algo dentro de mim já gritava "HOJE VAI SER BOM".
Ali, naquela entrada que tanto conheço e frequento, toquei meus primeiros acordes. Tentei passar o olhar em todos enquanto a música ressoava, e todos que ali estavam esperando para fazer exames me retribuíram com o mesmo gesto. "E se eu tiver alguma fala, eu mudo pra 'eu amo vocês'". Assim terminei a canção e estendi meu meu chapéu atrás do cachê. "Forma de pagamento? Pode ser palma, beijo, ou abraço, senhora. O que você vai preferir?". Ela se levantou e me abraçou apertado, e como uma onda do bem se propagando, todos a quem estendi meu porta cachê também pagaram a canção via abraço. Tinha que ser forte, apertado! "Você está tão linda, palhacinha. Que Deus te abençoe."
Subimos a escada e no corredor encontramos uma das funcionários do hospital. Já a conhecia de outros plantões. "Oi! Doutora Zói de Bila não é?". Pedi mais uma vez pra ela me dar os olhos azuis esverdeados dela: pedido negado.
Ao som de Noite Feliz, entramos cantando na pediatria. Uma porta aberta me convidou a espiar, e um menino de 3 anos me convidou pra entrar. Toque pra ele e ele me ensinou os acordes desafinados de "Jacaré", de autoria dele. Encaminhei-me ao quarto ao lado.
Dois meninos dividiam o quarto: Thiago, 10 anos, acompanhado do pai; e Lucas, que devia ter uns 8 anos, acompanhado da avó (que, pra ele, era 5 vezes mãe). Os dois estavam muito quietos e comportados pra idade, o que me causou surpresa. "Lucas, cê gosta de pop? Rock? Sertanejo? Forró?" e toquei Xote da Alegria. Lucas, que antes estava afundado na cama, foi ajeitando sua postura. Thiago ia observando de longe.
Pedi meu cachê em palmas, ma o chapéu ainda estava leve demais. Leite Ninho já é caro, imagina pagando com afeto! Depois de me pagarem com abraços comprimidos e sinceros, o chapéu ficou tão pesado que caiu da minha cabeça. Dr Cookie teve que me ajudar a achar todos os abraços perdidos na queda.
Em meio aos sopros da Dra Crystalina, eis que surge o pedido do Lucas por um balão vermelho com um coração alado e coroado. "Sabe que música isso me lembra?" perguntou Crystalina.

"Meu amor, essa é a última oração
Pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor
Cabem três vidas inteiras
Cabe uma penteadeira
Cabe nós dois"

Éramos palhaços cantarolantes no quarto. Meus acordes acompanhavam cada palavra, que cantei olhando no fundo dos olhos do Thiago. Senti que ele percebeu minha felicidade em estar ali, naquele momentinho da minha rotina, com ele. Não houve uma gargalhada, mas aos poucos a sua feição séria desencadeou um sorriso leve, discreto, confortável. Encontrei o calor naquele olhar.
Saímos do hospital proclamando aquela oração. Fiquei sem ar de tão radiante que estava. Naquele momento que findou a visita, lembrei das palavras do seu Ivan, e de palavras que escrevi no meu teste de seleção para o Projeto Y:

"Hoje me apaixonei por um par de olhos que provavelmente nunca mais irei ver, mas ele me deu motivos para sorrir o resto do dia."


Dra Zói de Bila

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Sobre o lugar pra onde eu não quero voltar

Há dois meses eu parti e deixei um monte de coisas pra trás.
Amigos, família, faculdade... deixei até meu país, meu continente, minha terra e meu sol.

Troquei tudo por uma vida absolutamente nova, sozinho, explorando o gigantesco mundo lá fora e o vasto mundo aqui dentro.

Há dois meses eu parti.

Desde então venho aprendendo muito sobre mim e as coisas. Mas, talvez, o que tenha aprendido de mais valioso até agora vem sendo os lugares para onde eu quero e os lugares para onde eu não quero voltar.

Também faz dois meses que eu me afastei da salinha laranja/azul, das maquiagens, do meu nariz vermelho, das bagunças na hora do almoço e do entrelaçado de pernas risonhas toda sexta feira.

E de todas as coisas que eu deixei, de todos os lugares que eu parti... eu não sei direito. Mas acho que um pedaço de mim ainda tá lá. Um pedaço de mim que talvez não tenha vindo comigo. Porque de todos os lugares que eu me afastei, esse é o que vem gritando mais alto em busca do meu olhar. Da minha saudade. E... esses dias... vem sendo o lugar do qual talvez...do qual talvez eu mais sinta falta.

Inclusive, graças a ele, esses dias pude explorar um lugar ainda novo aqui dentro; Graças a falta que sinto dele, andei percebendo que também sinto falta de jalecos e prontuários, de estetoscópios e receitas, de consultórios e consultas. Também sinto falta da medicina contra a qual tantas vezes bradei com meus punhos cerrados afrontas mil.

E talvez a distância esteja colocando as coisas um pouco fora de foco mas, eu já nem sei mais se esses dois ainda são mesmo lugares tão diferentes pra mim.

Há dois meses eu parti.
E o Y é um dos lugares pra onde eu não quero voltar.
Porque certos lugares...certas vínculos...sei lá...
...certas coisas não dá pra partir.