sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Sonhando



Rápido, preciso escrever enquanto lembro. 

Estou mergulhando em falas de membros antigos e novos buscando encontrar o nosso espírito. Entrevisto, gravo, escuto, transcrevo, me misturo, me perco. Sonhei. 

Sonhei que estávamos participando de uma reunião grave junto aos profissionais da Pediatria em que trabalhamos. Os profissionais estavam furiosos conosco. Descobriram que ganhávamos bolsas para exercer nosso ofício de palhaços visitadores de hospital. Que a bolsa não era irrisória pois eram pelo menos quatro integrantes que a recebiam. A Camila, quase fantasiada com sua palhaça, como se a dizer a que círculo ela pertencia, tentava docemente ponderar que as bolsas eram insuficientes para suprir a carência de recursos da Pediatria. Eram o que eles queriam. Reivindicavam que doássemos tudo. Que os cetoprofenos faltavam enquanto os palhaços brincavam. Nossa Camila e mais alguém, não era a Angélica (era a Laís?! mas a Laís ficava mais calada, Camila tomava a frente total da defesa), nossa Camila fazia os cálculos em uma lousa verde com giz branco à mão. A divisão de todo o dinheiro para todos os recursos humanos do projeto não findava por dar um centavo para cada um. Eles não queriam saber, estavam indignados. Se tão pouco sobrava na divisão, que tudo fosse entregue para o setor, seria de melhor valia. Havia um professor lá. Era o Dr. Álvaro. Ele queria defender-nos, mas Camila o impedia, achava aquele momento de discussão muito importante. Que as vozes não podiam ser caladas pela autoridade médica. Mas, as pessoas estavam alvoroçadas, chegavam a ter raiva de nossa insistência imbecil de se desapegar de um centavo. 


***

Camila já não tinha forças contra a insistência. Calou-se cansada. Correu como quem foge. Laís sai em seu socorro. Dr. Álvaro começa a chamar a atenção de todos do setor. Falam sobre o que significa a bolsa para os estudantes, sobre as necessidades do projeto, sobre a importância de investir em palhaços e não só em cetoprofenos. 


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Alguém nota minha presença, de repente. Estou ali no canto, chorando. Quando começam a notar o meu choro, choro convulsivamente. É que estava me doendo sobremaneira aquela rixa, aquela desconsideração, aquele clamor por dinheiro, quando o que existia entre os palhaços era, independente de qualquer bolsa, a gratuidade de toda essa ação generosa que fazia com que profissionais de saúde em formação se dedicassem, muitas vezes de forma sacrificial, para as crianças doentes. Uma das presentes me reconhece. 

- É o Dr. Allan. É o Acerola. Ele já é doutor mas não pára de estar por aqui, entre os Y.

Choro ainda mais. Penso na mansuetude da Camila tentando explicar sobre a graça de toda nossa ação e não conseguindo vencer a cupidez do um centavo. Dr. Álvaro entendia meu choro. 


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Não estávamos no prédio do Hospital Universitário. Era parecido com os esconderijo dos meninos perdidos da Terra do Nunca. Nenhum deles estava lá, muito menos Peter Pan...

Acordei. 

domingo, 2 de novembro de 2014

Nove anynhos



Fui dar uma palestra ontem sobre Política de Humanização. Encontrei uma pessoa muito querida que foi meu parceiro de palco. A fala dele o define bem: "Sou marxista. Não sou dos pós-críticos, para quem entende o que é isso. Sou marxista." E ele era extremamente engajado com o movimento estudantil, membro ativo de um partido político de esquerda, barbudo...

O movimento estudantil e Marx sempre me foram muito assustadores. Porque passam uma obrigação moral de que devemos ser engajados na transformação do mundo, se valendo de todos os argumentos ácidos que devem ferir nossa atual civilização até que, implodida, uma outra renasça, mais justa. Era o sentimento que eu tinha, pelo menos. 

Mas, o Y me conquistou de forma sorrateira, "ele não me trouxe nada, também nada perguntou", e, nas suas bobas pretensões, me mostrou o quanto se pode mudar o mundo sem querer destruir o que já está aí. Pelo contrário, o quanto se pode mudar o mundo revelando o muito mais que o mundo que existe nesse mundo. As realidades escondidas: os braços que se abrem, os dentes por trás dos lábios, as lógicas pervertidas, os significados velados, as crianças internadas, as crianças externadas, o doutor enarigado, o palhaço enjalecado, as tintas da pele, as peles de tinta, a família, o amor (a mais boba de todas as coisas), vocês (os mais bobos). 

Meus últimos meses foram percorrendo o que escrevemos nos últimos anos. Os últimos anos foram extremamente preciosos, quero que saibam. 

Os últimos anos foram extremamente preciosos e o mundo é o mesmo, e vocês já existiam nele. Os últimos anos foram extremamente preciosos e o mundo não é mais o mesmo, por causa de cada um de vocês. Parabéns, querydos!

Allan Denyzard 
(Dr. Acerola)