Sobre as pequenas coisas.
Eu estava atravessando um dos corredores do hospital-escola, por onde passam várias vidas em construção ou em recuperação e vi uma vida estranha, debatendo-se nas janelas de vidro. Uma borboleta alaranjada com pingos pretos nas asas. Entrara no hospital por aqueles espaços que se confundem com a transparência dos vidros e não mais encontrou outro espaço que não fosse ilusão de saída. Ora, porque aquelas transparências passam a idéia de uma liberdade ilusória para a visão leiga. É mais belo o mundo sendo visto no meio de seu ar quente e úmido que nasce da terra mesmo, nua, do que apreciá-lo de dentro de uma estufa. Devia ser por isso que a borboleta se debatia. Ela queria o mundo que transcendia aquele corredor, aquele hospital todo. Queria mais que o hospital, porque ela não se desviava pro lado que não tivesse visão de céu. Pra dentro do hospital há escuro de prédio, ela queria aquele azul anil.
Eu passei e encontrei aquela luta. Admirei aquele enorme desejo flutuando inquieto por ali. Pensei em soltá-la. Tive medo e passei direto. Pensei, então, que a luta solitária dela a tornaria mais forte. Passei direto, mas fiquei olhando de soslaio como se aquela luta me ferisse, me convidasse para lutar com ela, por ela, me convocasse. Não, estaria impedindo de ela crescer vencendo aquelas ilusões em rumo da liberdade maior. Não adiantava só voar, aquele voar tinha de ter espaço, e carecia de estética, uma beleza que estava longe daquele corredor. Mas a dor a faria maior. E quando conquistasse o vôo sereno, seria ela mais feliz para além daquele cansado debater. O mérito deveria ser dela e dela só.
Ah! Maldito coração. Ele ficou pequeno. E disse que quanto mais eu andasse dali pra longe, quanto mais eu adquirisse o espaço que aquele pequeno ser pelejava adquirir, quanto mais eu o fizesse só, menos ele me seguiria, meu coração iria me abandonar. Iria ficar pequeno em cada passo avante até desaparecer.
Já estava virando a esquina e parei. Olhei pra trás. Diz um provérbio antigo para nunca fazer isso - deve ser por isso que ele é antigo. Fui até a pequenina e ela começou a bater mais forte. Não queria minha mão amiga. Quantas mãos já não a prenderam! Quantas outras não a mataram! Mas a mão que está dentro do hospital só quer devolver vida - me apercebi dessa verdade. Deve devolver vida. Deve querer constantemente isso.
- Para que Deus nos deu mãos?
- Para libertar borboletas.
Eis minha primeira paciente desses últimos quatro anos. Minha do começo ao fim. Desde a aceitação em tratá-la até a glória de vê-la livre. Tudo bem que ela não requisitou consulta, nem agendada estava. Mas aquelas asas intranqüilas poderiam caracterizar um pedido. Poderíamos colocar na categoria de Demanda Espontânea Inconsciente ou Instintiva.
Ela nem me agradeceu também. A não ser que quisessem me dizer alguma coisa aquelas curvas que se delinearam no ar lá de fora.
É... Pelo menos tenho meu coração comigo.
Um comentário:
Ae pessoal..apesar d nao falar especificamente d nossas visitas...achei que esse texto do aulan expressa fortemente nosso espYrito...as dúvidas pelas quais por vezes passamos na interação com determinados pacYentes e talz...
Mas serve tb pra nos encorajar a libertar mais borboletas escondidas naqueles olhares e sorrisos!
Kejus a todos! =)
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