Apareceu um comentário simpático sobre o nosso Y na postagem passada. Duas coisas me chamaram a atenção de forma tão particular que não pude me abster de comentar o que ele comentou.
Antes de qualquer coisa, agradecer e ficar feliz. Não é caso isolado as pessoas nos abraçarem agradecendo por nós existirmos. Sublinho que todas as vezes que fui abraçado por essa existência solidária, foi, em verdade, na minha outra forma de existir na faculdade, por trás de um nariz. Não é diferente o que Marcus Mazzo fez aqui. Ele nos abraçou em uma forma bem particular de existirmos aqui na web. O que contamos nessas páginas são experiências compartilhadas de nariz. São, por assim dizer, catotas. Os pés-no-chão diriam que aí está a grande falha de nosso projeto: não somos o que passamos ser de verdade, somos a mentira de um momento de palhaço. Uma opinião bem conforme àqueles que sempre dizem que "é brincadeirinha", quando querem dizer que "é de mentirinha", desconsiderando ter toda brincadeira um fundo de verdade.
Preciso falar sobre
o momento. O Mazzo falou de “sorrir por alguns instantes”. O hospital passa dia e noite com os olhos acesos para que o doente melhore. E nós passamos alguns instantes. Qual a autoridade que nós temos para criticar os olhos eternamente acesos? O problema é que os olhos do hospital acendem como as lanternas dos médicos, para olhar uma só parte que às vezes querem nos convencer que é tudo o que importa. Vigiam eles a dor daquele momento. Para que a dor venha a ter só alguns instantes, o hospital trabalha todo tempo. Mas, que dor? Esquecemos que a dor tem muito mais de invisível do que podemos perceber. É com esse invisível que tentamos trabalhar. Não somos a substituição para os olhos, somos o que não é olho. Não somos a exaltação dos sentidos, esse método clínico tão querido que faz o homem engaiolar a doença (e o doente) dentro de um diagnóstico, somos o que não faz sentido. E bem que queríamos ser eternos dentro do hospital, mas eu me pergunto por que a palavra instante brilha na escrita de Mazzo, bem como na vontade daquele instante por muitos amigos nossos? É porque não somos eternos, mas inauguramos eternidades instantâneas no seio daquela enfadonha eternidade cotidiana. São como bolhinhas de sabão n’água.
- Para onde vão aqueles palhaços tão coloridos? Espocar no ar da graça daqueles pequenos!
Outra coisa, que até continua o que eu vinha dizendo, é que Mazzo faz uma metáfora muito mais parecida com a gente do que pode querer contradizer o “mas” dele. O hospital nos treina para sermos
médicos de programas. O paciente é todo um encadeamento complexo de estruturas físicas (
hard) geradoras de atributos aparentemente abstratos (
soft) que por hora estão desequilibradas. A intervenção do especialista deve fazer retornar o equilíbrio possível máximo. Não quero denegrir os muitos colegas que fazem dessa profissão o sentido de suas vidas, mas é que a gente se enreda num sistema de afirmações que definem o que é a doença e não percebe que acabamos por definir o ser humano pelos mesmos referenciais.
Então, volto para a mentira que passamos ser. Felizmente eu nunca disse que era o Acerola. E vejo uma concordância dessa atitude em todos os meus companheiros. Quando chega aquela figura bizarra a quebrar tudo que parece tranqüilo, não é uma mentira que se espalha, é uma
transcendência.
Quando Jesus interpretou o amor no mundo, veio grávido de um Reino que transcendia qualquer olhar humano. Muitos olhavam e não viam nada. E ele, louco, andava sobre águas. Com que pés? Com os pés no chão?
Quando Marx provocou guerras no mundo, só o conseguiu porque angariou pessoas suficientes para se engajar num projeto de um mundo que nunca existiu. Era mentira? Impossibilidade? Imaginação? Era a busca por um amor pelo outro que transcendia as lógicas de produção que regem o capital.
Não vivemos em um mundo só de individualismos. Mas também de fome do que nos transcenda.
É bem verdade que a busca pela nossa individuação foi uma conquista histórica fantástica. O respeito pela intimidade, pela privacidade, pelo corpo. Mas, com o médico-palhaço queremos propor um sentido de vida que seja mais do que esse cotidiano enfadonho material. Mascarado, ele não deixa de ser humano, mas bota pra fora uma transcendência que não deixa de ser íntima - aprendemos a guardá-la na intimidade. Retoma os não-olhos de um Reino cheio de amor e de alegria, fazendo do instante a revolução de todo um século, para distribuir a riqueza do tempo para o mais frágil dos seres humanos. Compartilhando a imaginação com a criança, ele faz daquele mundo impossível a presença de um futuro constante.
Não é que os abraços fossem falsos. Ou que eu não merecesse os abraços. Não abraçavam só a mim. É que esse projeto todo exala um perfume de sonho que a gente colhe de um outro tempo que deve ser cada vez mais próximo. Com o esforço amoroso dos homens e com a graça carinhosa de Deus! Abraçam a já existência do que só aos poucos tenta existir.
Allan Denizard