"Pra começar
a colorir
algum lugar
que seja aqui
com um balão só
já da pra voar
Pra começar
a descobrir
o que é chegar
e o que é partir
o coração só
precisa de ar
E deixar"
Cícero
30 de novembro de 2015
Concluo o dia lendo a frase que
um antigo professor escreveu na minha foto de palhaça: mais uma vez, discípula
supera o mestre, realizando um sonho. O mesmo professor que olhou pra mim no
momento em que ninguém mais olhava e disse que se fosse ele, na minha situação,
passando por tudo o que eu passava e fazendo tudo que eu fazia, ele não
conseguiria. Escrevo essa frase com as mesmas lágrimas nos olhos de quando a
escutei pela primeira vez e de quando a repeti pela primeira vez, para o mesmo
professor. E penso, então, em tudo o que senti hoje e de onde vem esse choro: o
mesmo choro de quando escutei a frase, o mesmo choro de quando vi uma criança
deitada em uma cama de hospital sem o brilho nos olhos próprio das crianças
(com o olhar de quem já viu muita dor), o mesmo choro de quando o João colocou
seus bracinhos ao redor do meu pescoço, me passando todo aquela segurança e
aquele amor.
Tenho
medo de escrever esse relato, medo de que seja pesado, ruim, ou insuficiente.
Mas não consigo parar os meus dedos.
Eu
tinha aquela crush pelo projeto Y desde o nosso primeiro contato, vendo as
fotos dos palhaços pelo facebook. Mas sempre me pareceu tão tão distante. Perdi
a seleção no semestre passado! Era meu primeiro semestre na UFC, no curso de
Psicologia, o que parecia muito errado. Sim, psicologia era tudo o que eu
queria, mas foram tantas as reviravoltas para que eu entrasse nesse espaço que
eu me perguntava se de fato eu era merecedora. Duvidava se eu seria boa o
suficiente para a psicologia, duvidava se eu seria boa o suficiente para o
projeto.
Com a
vida acadêmia mais bem resolvida (poderia chamar também de menos emocionalmente
problemática) nesse meu segundo semestre, veio a minha reaproximação com o
teatro, a minha exploração do universo da meditação; e o YPUD veio como um
presente, uma esperança e uma oportunidade de ressignificação de tantas
questões. Email enviado com 4 minutos de divulgação, dias de ansiosas esperas,
até aquele email todo coloridinho chegar na minha caixa de entrada toda borrada
de cinza dessas obrigações acadêmicas.
Em um primeiro
momento, nos reunimos na capacytação: mas, eu sairia preparada? Duvidava. Batia
a ansiedade: não acho que conseguiria nem com 80 horas. Mas, naquela sala cheia
de ansiosas ansiedades (sim, essa é a melhor descrição), eis que surge aquela
luz, que podemos chamar de Sarah, ou mesmo Dra. Crystalina, com a sua
companheira Amanda Vermelha, ou Dra. Amêndoa. Exploramos os planos, exploramos
o corpo, os limites, a mente, a junção. Exercício gostoso pra mim, que sinto
falta de todas as oficinas de teatro.
E
apagam-se as luzes, escutamos a voz que dizia para respirarmos e imaginarmos
uma clareira, uma floresta; uma paisagem que já tenho formada, de outras
meditações. Vou para minha fonte conhecida, e encontro a minha criança. A
pequena Letícia, antes de ser apelidada de Lê. Aquela que se apresentava
dizendo "Oi, meu nome é Letícia que significa Alegria". Aquela
criança, cheia de esperanças e sonhos, de fé. Então, abraço, desculpas e
aconchego. Ela parte, e chega então a Letícia mais velha. Eu sei lá qual vai ser
o apelido dela. Ela era meio borrada, mas me lembrava uma tia. Tentava
transmitir diversas mensagens que eu não conseguia captar, até que ela me
abraçou e disse: não desista. Resista, menina! E, em uma mistura de dor e
dúvidas, ela partiu. Eu permaneço sozinha até a chegada do meu palhaço. Não vi
forma ou tamanho, vi vermelho. Não vi nome e nem cabelo, vi força. Vi olhos
bondosos. Eis que nos entregam nossos narizes e dizem: coloquem no tempo em que
vocês se sentirem confortáveis. Explorei o meu nariz nos mais diferentes
lugares, no coração, na cabeça. Até que quis colocá-lo no meu rosto. E tentei,
mas o elástico partiu. E eu tentei consertar, tentei novamente, mas o elástico
partiu. Nesse ponto, os demais participantes já estavam falando os nomes dos seus
palhaços, as personalidades. E eu insistindo em tentar colocar o meu nariz.
Veio a insegurança, o medo, a frustração. Mas eu insisti, e coloquei o meu
nariz, o que foi surpreendentemente confortável. Eu não sabia nome, ou roupa,
ou cheiro, ou jeito da minha palhaça. Mas eu sabia que ela tinha força,
resistência, e todo esse meu lado de avoada, de aleatória,de criança, de
desastrada, de perdida. O barquinho no mar, a deus dará. O balão de ar quente,
andando pelos ventos. Minha
palhaça tem olhos bondosos (ato falho do momento: fui escrever olhos bondosos e
escrevi bons sonhos, minha palhaça tem bons sonhos).
Mais
dias se passaram, o que não passou de jeito nenhum foi a ansiedade. Finalmente
a minha segunda-feira chegou. Chego na salynha com a Rafa (Rafa Rainha, o resto
é princesinha). A salynha está cheia de rostos-meio-conhecidos. Bateu o
nervosismo e aquela minha timidez que na verdade, é bem incomum. Vestimos as
roupas, eu trouxe a minha de casa. Blusa vermelha, enfeite de cabelo e minha
calça favorita (eis que eu trouxe alguma segurança!). Eita que chegou a hora da
maquiagem... Mas eu não sei maquiar! Mas eu não sei pentear! Eu não sei
pintar!!! E eu pego o pancake branco (um velho conhecido) e destaco os meus
olhos. Pego o lápis vermelho, traço uma espiral, o símbolo que não pode faltar.
Desenho o meu balão? Desenho o meu balão de ar quente. Pego um guarda-chuva
combinando, que a minha insegurança requer a proteção. E quando menos espero,
estou me defendendo de uma chuva de bombom.
Entramos
no hospital. Eu, uma sem nome, a Dra Aurora e a Dra Espirro. Logo na portaria
perguntam pra mim: Qual é a sua graça? E eu respondo que não tenho graça, não
tenho um nome, sou Sem Graça. Eis o meu nome do resto do dia. Adentramos ao
hospital, onde encontramos os ouros da árvore de natal e o papai noel. O meu
peito pulsava de agitação, medo, alegria. A força que eu ganhei ao colocar o
meu nariz vermelho (e perder todo o meu juízo) me deu a liberdade de ser o que
eu era, pro bem e pro mal. Entramos na pediatria, onde converso com uma mãe e
em seguida, me apresento para duas pacientes quase crianças grandes,
adolescentes. Estranho a interação, eu era a única desconhecida, mas gosto do
convite para jogar baralho, das brincadeiras do meu nome Sem Graça (da falta do
nome). Eis que sou levada para conhecer um menino que eu estava ansiosa, e no
meio dos seus dentinhos pequenos e da sua voz baixa, sinto o peso do mundo. O
baque da realidade, o momento de entender que aquelas crianças estão doentes,
que são os pacientes. Eis que bate a incompreensão, as dúvidas, a frustração, o
medo.
Sou
dominada pelo medo, até que vejo uma palhaça subindo na mesa da enfermaria. Pra
mim, aquele foi um ato de fortalecimento. Eu não posso curar aquelas crianças.
Eu não posso controlar o destino. Eu não posso tirar o sofrimento do coração de
todas aquelas pessoas. Eu posso convidar a todos, as crianças pequenas e os
adultos (as crianças grandes), para entrarem comigo no mundo da minha palhaça,
um mundo que eu estava descobrindo, para fugirem do cinza e branco do hospital,
para entrarem no meu mundo colorido. A frase dita pelo meu antigo
professor fez tanto sentido enquanto eu olhava para todas aquelas crianças no
hospital. Se fosse eu, passando pelo que eles passam, fazendo o que eles fazem,
eu não conseguiria.
Ainda
no início da minha visita, vejo pelo vidro grosso o Dudu, que estava dormindo.
Sua mãe vem até mim, chorando. Me confundiu com outra palhaça, contou sobre os
procedimentos difíceis que seu filho passou nessa manhã. Me contou que tinha medo.
Seu filho começa a despertar. Passeio por outros quartos, brinco com as minhas
novas amigas, faço o exame do estetoscópio e verifico que não tenho juízo
nenhum! Volto então para a grande janela, e o menino começa a me encarar, mas
não brinca. Ele puxa o fio com o soro, até arrancar do soro. A mãe e um médico
(eu acho) vão até ele, e eu continuo pelo vidro, mas ele vira o rosto. Dou
outra volta pelos quartos, e quando volto ao vidro, encontro a minha amiga Dra
Aurora também no vidro, tentando brincar com ele. Começamos a interagir.
Tapamos os olhos, os ouvidos, nos abaixamos, nos escondemos. Ele começa a rir.
Ele nos imita! Levanta os braços! Coloca a mão nos ouvidos! Até cansar e buscar
a sua mãe. No fim da minha vysyta, ele estava correndo nos corredores. Ele nos
acompanhou até a saída da pediatria, levando o seu carrinho e correndo, fugindo
de mim. O menino que não abria os olhos, o filho da mãe chorosa, estava rindo e
correndo. Todas as minhas aflições tinham sido apagadas e minha fé, restaurada.
Durante
a vysyta também fiz outro amigo, o João. A primeira vista, ele não queria
brincar comigo, correu pra sua mãe. Mas ele viu as minhas bolhinhas de sabão! E
quis! Fiz pra ele, ele tentava pegar todas. Até que ele quis fazer e fez as
suas próprias bolhas, e eu estava com o meu guarda-chuva, "me
protegendo" daquela chuva de bolhas e escutando a risada do menino. Ele
quis, então, vir para os meus braços. O medo bateu novamente. Ele é tão
pequeno, tão frágil! E eu sou tão desastrada! Procurei por ajuda, por minhas
doutoras. Mas como se fosse obra do destino, para minha superação, fiquei
sozinha. Ele quis passear, ver as luzes da árvore de natal. Quis ver as outras
crianças, e fomos. Eu, tão insegura, tão assustada, com tanto medo, senti
aqueles dois bracinhos ao redor do meu pescoço, em um gesto de confiança, de
segurança e de amor.
Agora,
depois desse dia cheio de emoções, de metamorfoses, de metanoias, de
transformações, de ressignificações, de descobertas. Depois desse dia cheio de
medo, ansiedade, alegria, frustração, esperança, impotência, potência,
liberdade; eu concluo esse texto com as mesmas lágrimas da primeira vez que
ouvi a frase do meu professor, de quando vi as crianças como pacientes, de
quando vi o menino correndo. As lágrimas que vem do meu coração, da minha
essência. As que trazem a mistura dos sentimentos. O medo e a admiração, a
esperança e a descrença, a depressão e a alegria, a superação. São as lágrimas
que regam os meus olhos em todas as vezes que eu fui Real (e que significado
fantástico essa palavra tem pra mim), em todas as vezes que eu trouxe pra esse
mundo físico um pouco da minha essência, nessas vezes em que eu posso pausar o
tempo para marcar: eis que agora eu sou alguém.
O
jaleco, que sempre foi pra mim algo hostil, símbolo da medicina que eu
acreditava estar fugindo, foi ressignificado como o branco complementar da
minha vestimenta de levar alegria. O hospital se tornou habitável. O nariz, que
antes era apenas o vermelho da farda do palhaço, se tornou a porta para todas
as possibilidades, para a minha liberdade. Hoje eu fui Sem Graça, quem sabe
amanhã eu sou Alegria, ou apenas Alê, a lê.
O meu
coração termina esse dia cheio e vazio. Cheio de amor, vazio de insegurança. O
hospital ainda me assusta, mas agora eu conheço a possibilidade de me fazer
lápis-de-cor.
Agradeço
a Dra. Aurora, a Dra Espirro. Agradeço a Rafa e a Preta. Agradeço ao Caju e ao
Mayko. Agradeço a Sarah e a Amanda Vermelha, a Crystalina e a Amêndoa. A todos
os palhaços do Y, que constroem esse projeto que eu tenho orgulho dizer que eu
participei, mesmo que seja só por um dya. E agradeço principalmente a todas as
crianças pequenas e crianças grandes que me permitiram o grande privilégio de
as trazer para o meu mundo de palhaça, a todos que eu tive a oportunidade de
fazer sorrir.
Me
despeço então do Projeto Y, esperando que nos reencontremos depressa.
Com
muito amor,
lê.
Ressignificação do
jaleco, chuva de bombom.
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Relato de Experiência feito por Letícia Lima, que participou do Y Por Um Dia no dia 30 de novembro de 2015.
Muito obrigado por compartilhar esse precioso texto conosco, Letícia! Ficamos extremamente felizes por termos tido a oportunidade de ter toda essa rica vivência com você.
À todos os participantes do Y Por Um Dia, sintam-se absolutamente livres e enfaticamente convidados a nos enviar também os seus relatos, impressões e sentimentos sobre as suas experiências.
Texto publicado com a devida autorização da ilustríssima autora.
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