Fui convidado certo dia a levar o Dr. Acerola para entreter um grupo de crianças num dia de festa em suas homenagens. Costumamos rejeitar esse tipo de papel, porque não somos palhaços de festa. Esse tipo de palhaço comanda um amontoado de crianças, organiza a indisciplina em que elas poderiam se transformar para se livrar do tédio ou para reagir ao chamado das muitas outras crianças que são poços de possibilidades de brincar. Quanto mais possibilidades fora do nada da mesa dos pais, mais cheia de diversão a festa, mais aversão dos adultos a esse correr e virar a festa ao avesso. Então, se contratam palhaços para conterem as crianças com suas brincadeiras organizadas, com sua equipe que chama a atenção, com seus brindes que prendem e, muitas vezes, segregam – vitoriosos e perdedores. Não chamem o Y para festas!
Fui convidado e aceitei. Por quê? Primeiro, porque não era uma festa propriamente dita. Era uma confraternização em um parque, um imenso parque. Segundo, porque eram crianças pobres do centro da cidade, assistidas por um punhado de voluntários que pelejavam por ensinar valores morais que as transformassem, senão em cidadãos, pelo menos em decentes marginais. Terceiro, porque era desafiador e um dos meus analistas tinha dito que o melhor remédio para o medo é o risco, faz-se angústia. E a angústia é gostosa.
Enfrentei um baita embrulho sem saber o que ia fazer com os pequenos. E, em frente do horizonte de ter de enfrentá-las, as crianças, muitas e soltas, comecei a pensar em brincadeiras que pudessem entretê-las – o mesmo pecado em que incorrem os palhaços de festas. Falei na noite anterior dessa minha angústia para um amigo que não viu nada demais em brincadeiras organizadas e achou desmedida a minha preocupação com o ideal de liberdade e contravenção do clown desorganizador. Pensei em algumas brincadeiras e graças a Deus o parque era a prova delas.
Chegando lá a primeira coisa que houve foi a dispersão na medida do crescimento da minha dúvida de que eu tivesse alguma função ali. Já haviam me anunciado como participante de um grupo que tinha experiência em animar crianças. Dependendo do significado do termo animar, eu era, o que não era talvez o mesmo significado do anúncio. Uma criança que quebra o vidro da escola com um chute numa bola de meia só pode estar muito animada. Tão animada que nem precisa de bola, uma meia aqui, outra ali, e pés descalços. Tão animada que a janela era alta e a bola foi falar com ela, sem saber muito bem a distância de um cumprimento cordial. Me odeiem por essa subversão radical, mas o Y é essa animação, pegando macas com rodinhas em pleno corredor da Pediatria para servir de automóvel em corrida. É como quebrar janelas com bolas de meia. E bufam as médicas e enfermeiras que só querem ordem, primam por ela, ganham por ela.
As crianças tão logo chegaram se embrenharam naquele verde e naquele ar que mais pareciam pássaros soltos há pouco.
- E agora? Você quer que eu chame elas para começar a brincadeira?
Mas como, se a brincadeira já tinha começado?! Ufa! Não houve cena mais linda que a daquela liberdade. E aquelas crianças com a corrida que dizia não precisar de mim para se divertirem me colocava no humilde lugar de apenas mais um membro do mundo. O Dr. Acerola veio e unitário no meio do mundo onde tudo é meio começou a encher balões e distribuí-los, junto com acenos e sorrisos e cumprimentos, pras pessoas, pras não-pessoas, pras mesmas pessoas e pras outras pessoas. Alguns olhares vieram a sua procura e o Acerola consegue sua aceitação pelos pequenos. Não os chamei. Eles vieram. Não pedi e eles me aceitaram. Ou melhor, não os chamei com as palavras de ouvir nem os pedi com as palavras de aceitar. Lembram? O Y é muito de silêncio para os que só estão acostumados a ouvir o cotidiano.
Das minhas mãos saiam balões como se fossem bolhas com a palheta no vento bom. Dos meus pés saíram carreiras porque os meninos não paravam de me perseguir. Do meu jaleco saiam rasgos porque subi nas árvores e os da terra não paravam de me puxar. Janelas quebradas e bolas de meia!
No final, águas em saquinhos de dindins foram distribuídas para os moleques. Eu quis uma e outra das boas aconteceu. A que distribuía hesitou um pouco em me dar, porque era água de torneira. Como? Aqueles meninos com quem eu passei a manhã brincando, que manhã gostosa!, podiam beber daquela água de torneira e eu, que já havia subido tanto para conseguir alcançá-los, saido da minha pequena vida de estudante de medicina, escalado as maquiagens e vestimentas do Acerola, não podia subir só mais um degrau e destemer as águas do mundo? Foi uma manhã gostosa assim como a água, que, dizem os livros de ciência, potável é insípida. Mas aquela foi extremamente potável e gostosa como manhã de brincadeira. Descia pela minha garganta leve como crianças correndo em parque e flutuava no meu estômago como balões produzidos em massa. Eu era um deles. Se as verminoses me atacariam depois, cobrando o preço daquele caótico paraíso, de que serve a medicina? Albendazol, Secnidazol, Metronidazol... para salvar esse palhaço que mais parece um pacote de dindim cheio de lembranças, boas lembranças, muito boas lembranças.
Allan (Dr. Acerola)