(5 min de leitura)
Uma professora de clown disse que era uma pesquisa ousada, típica da pós-modernidade, esta que eu estava empreendendo. Eu disse para todos, à turma do mestrado, desde o início, que queria pesquisar sobre o que há de espiritualidade na palhaçoterapia. As pessoas se admiraram, porque acharam estranho e difícil demais tentar desenvolver algo assim. Todavia, nunca visualizei outra abordagem.
Nos dez anos que acompanhei o projeto, vendo-o crescer, geração após geração, lá estavam pessoas se revelando, se desafiando, colocando máscaras, deixando outras caírem. Fomos construindo ritos de acolhimento e de despedida, de desabafo e de captação de brilho nos olhos. Presenciávamos a sala lotada nas palestras sobre o projeto, quando à seleção de novos integrantes. As lágrimas ao conseguir entrar e por ter que sair. Sem contar nas outras tantas que diziam "foi meu porto seguro", "me deu um sentido na faculdade", "não imagino fazer algo igual na vida".
De que ordem são estas falas? Da verdade? Sim, há uma verdade em cada fala, mas não é universal. Existe singularidade em cada vivência. Do dever? Era uma obrigação as visitas de palhaço ao hospital, mas engajadas em um sentido para além da retidão e do crime, e cheias de gratuidade. Do político? Nada tem a ver com a administração dos bens públicos, da polis ou da luta pela justiça social, a não ser em uma política muito própria dos afetos. E, então, o que? O que estamos falando quando dizemos "sentido", "amor", "singularidade"? Não creio estar sendo leviano se disser que são expressões da ordem do espírito.
Um erro que talvez eu tenha deixado escapar no vídeo, mas que logo depois corrigi, é que para pensar a ordem do espírito não devemos pensar em sentidos que escapam como que despregados do resto da realidade material. São assuntos que coroam nossa vida. Imaginei agora aquelas aves do Pequeno Príncipe que o levaram para além de seu planeta, mas igualmente a flor que ele amava tanto e que o feria na mesma medida. As aves, a flor, um pequeno príncipe, sim, é de espírito que estamos falando. É o que dá humanidade ao corpo, é o que se apaga nele à morte.
Sabia que se o objetivo era flagrar estes assunto nas falas das pessoas, era o espírito que eu deveria deflagrar em nossas interações de pesquisa. Tentar se mover sobre a face dessas águas, como Deus o fazia ao princípio de tudo.
O pesquisador não é Deus. Não faz surgir as verdades da pesquisa ex nihilo. Assemelha-se mais ao demiurgo platônico: uma espécie de divindade que manipula os elementos já existentes dando forma aos mundos. Ser uma divindade é afastar-se dos mortais. É o meu movimento quando busco objetivar o olhar, escalando referências bibliográficas para encontrar quaisquer peles que consigam enfaixar as ideias.
Um detalhe importante que falarei no próximo momento é que esteve longe de eu poder ter sido um demiurgo completo. Antes, um leviano que se esforçou por um movimento apoteótico. Eu vinha misturado com todos estes rapazes e moças na esteira do tempo, na areia dos anos. Tive que desapegar, desvencilhar, desvanecer-me como membro até onde dava para conseguir olhar com mais calma, mais serenidade, mais leveza seus movimentos. Ao final, você deverá perceber que essa atitude só me trouxe mais insônia, inquietação, agitação. E é o que Nitezsche aprovaria, pois disse só poder acreditar em um "deus que dança".
Essa pesquisa, pois, acabou sendo uma dança com eles.
Querendo acessar a dissertação completa, clique aqui.
5 comentários:
Olá, sou Gabriel, estudante de psicologia, não faço parte do Y, porém, sou um amante do projeto, enche-me os olhos ao ver a beleza e a riqueza que existe dentro do Y, proponho-me a acompanhar essas 8 semanas de formação e com elas conhecer a grandeza que perpassa esse mundo construído dentro do projeto!
Oi, Gabriel, de onde você é? Ficamos muito felizes com seu interesse. Se não for muito exposição dizer algumas palavras sobre você por aqui, ficarei grato em saber de que vida você fala. A próxima aula vai ser sobre o capítulo 1. Nele eu, autor, me exponho. Você vai entender porque. Vou pedir para cada um do Y falar de si também. Mas em outro lugar. Como dizia Colorado, sigam-me os bons!
Não acredito em um Deus que não dance. Essa frase está escrita na porta da casa onde eu pratico biodança toda quarta feira. Aqueles que forem mais íntimos dessa dança que se propõe a nos lembrar de como viver conseguem identificar muitas semelhanças entre ela e a palhaçaria, eu diria. Acredito que as falas de uma das facilitadoras poderiam facilmente se confundir com alguma sua durante as capacitações, de verdade. É um autoconhecimento gigantesco, tanto se propor a dançar para viver como ao por um nariz de palhaço e entrar em cena. É um autoconhecimento de tal forma potente e intenso que algumas vivências me rendem sem palavras. É tanta coisa que eu sinto depois que acaba uma sessão de dança que as vezes leva semanas para eu conseguir digerir completamente ou sequer chegar perto de entender o que houve e qual foi o aprendizado que uma dança, que pode parecer algo simples, trouxe. Não que isso ocorra depois de alguma visita também, como se fossem coisas correspondentes, apenas ocorre de outra forma, ainda seguindo a mesma lógica. Eu me explicarei melhor. O doutor palhaço nos dá os meios para que possamos redescobrir o ser humano em nós quando oferece a oportunidade de fazer isso junto aos colegas de nariz, no contexto de salinha segura em meio a faculdade. A nós é permitido buscar o humano e o menino/a lá dentro da forma mais aconchegante, para que possamos aprender a enxergar o humano em nós ali, para que então possamos enxergar o humano no outro ali e, finalmente, enxergar o humanos em todos, em qualquer lugar. Da mesma forma, a biodança me convoca a me reconectar com a vida e comigo num ambiente propício e de forma leve, para que se possa ser mudança primeiro para consigo, para então alcançar o outro e então a totalidade. Tudo num desenhar de perspectiva que se traça da maneira mais confortável possível, dadas as circunstâncias e apesar de tudo que hoje nos cerca. Não sei bem o que essa aula 1 queria tirar de mim, as palavras lidas apenas dançaram pelo corpo e conversaram com experiências que eu estou vivendo. Não sei se dei as informações necessárias, sei apenas que sou um membro novo que está aqui por ter se proposto a isso. O que mais mexeu comigo e mais demorou pra eu falar aqui nesse comentário também é o fato de que toda essa transformação proporcionada é uma coisa muito forte. Vem pro bem, é claro, mas é um processo que deve ser respeitado. Se, de repente, quisermos enxergar como muitas coisas estão erradas ou que nada está certo de uma vez só, seria quase tão ruim quanto nem sequer pensar sobre. Tentar se forçar a enxergar com mais calma e a viver melhor pode ser justamente o que traz a inquietação. Obrigado!
"Não existe uma técnica, existe uma transcendência." Queria pegar esse gancho para iniciar minha fala. Ao longo dos exercícios introdutórios que todos passamos, não me recordo de um momento em que me foi exigido técnica. Eu sou troncho, desengonçado e pra mim as perfomances que me eram exigidas eu as fazia com maestria, talvez exatamente pelo fato de eu não ter noção corporal. E não me enxergar como troncho, desengonçado. Se as pessoas riam, estava tudo certo, pouco me importava se era ridículo. Aquele não era eu mesmo, era o meu doutor-palhaço. Pra mim, isso simboliza, mesmo que não por completo, a espiritualidade do clown. Quanto à transcenência, como aquilo que não vejo mas continua sendo um traço meu, sempre que me maqueio, como forma de identificação, eu me olho no espelho depois de pronto e inconscientemente pergunto ao Galalau "ei, você tá ai?" enquanto faço caretas, falo abobrinhas e cantarolo. Preciso de uns minutos pra me acostumar, tanto antes, quanto depois, quando já estou de gente, e quase que por um deslize faço uma brincadeira com alguém na rua, mas me lembro de que, naquele momento, não sou mais Galalau, apesar de sê-lo.
Oi, Allan. Arthur aqui.
84 anos depois eu tô voltando pra essa conversa aqui, tentando entender as marmotas que a gente faz no hospital. E por que não são só marmotas.
É engraçado ver que se dá pra pensar em algo como a espiritualidade do palhaço. E faz todo o sentido do mundo, quando se pergunta sobre a função do riso, da arte, da poesia; bom, pelo menos na minha cabeça, né.
Sobre a questão de dar sentido à vida (ou pelo menos à faculdade), no meu caso me colocar como a personificação do Mungango foi um divisor de águas, na mesma época em que eu comecei a estudar sobre o biopoder e sobre bioética.
Daí eu começo a pensar que todo mundo devia escrever mais no blog. A gente devia aprender a não deixar essas coisas se perderem no fundo da nossa memória.
Postar um comentário