O campo gravitacional de um palhaço ondula uma Kinesfera de possibilidades desestabilizadas. Tudo lhe é permissível, pelo fato de não pertencer ao mundo das condutas padrões, expectativa de quem não pertence a esse mundo. A expectativa de quebrar a própria expectativa. Pessoas com quem nunca falei antes, às quais nunca vi, quebram minhas próprias expectativas. Elas existiam naquele momento e tudo começaria a funcionar. Finalmente chegava o momento de me vestir palhaça e construir a cena da minha Primeira Vysyta.
No início, a adrenalina me permitiu explorar alguns jogos, alguns diálogos e interações. Mas rapidamente centrei meu eixo gravitacional e me auto-desestabilizei, quando percebi que um palhaço de hospital não apenas é um ator cenário, mas também público, que transforma público em personagem e inverte os papeis. Criei a expectativa e ondulações em cima de mim mesma. De repente, aqueles rostos amórficos e desconhecidos começaram a me assustar. Precisei buscar outros palhaços para me introduzir àquele momento: apenas um reflexo de mim. Eu não tenho medo de palhaço, mas tenho medo de gente.
Assim, todos meus monstros vieram. Medo de me infiltrar em um instante da vida de alguém. Medo de incomodar. Medo de mostrar algo meu para alguém, medo de me abrir. Medo de causar qualquer reação. Medo de confiar e entregar o que eu sinto. Medo de olhar nos olhos, de receber, de tocar. Não medo de doar, mas medo de não ser recebida. Medo de falar.
Regurgitei tumores de palavras, pétreos, encravados em minha garganta, que digeriam minha voz. Qualquer som produzido por mim parecia o estrondar de garfos arranhando pratos de porcelana. Ninguém queria ouvir minha voz, nem eu mesma. Das poucas vezes que consegui falar, as palavras fugiam de mim e eu desviava minha linha de raciocínio. Tinha medo do que poderia sair de mim ao me perder na estagnação de qualquer resposta a estímulos. Entrei num vácuo interno, que não consegui dar continuidade. Em certo momento da visita, eu estava, praticamente, fazendo mímica. Ao perceber isso entrei em desespero. Eu não me fazia sentido ali. Não tinha conseguido me conectar com ninguém. A palavra havia morrido.
Depois de algumas quebras na minha vida, eu atrofiei minhas palavras e hipertrofiei minha expressão corporal. Meu corpo sempre gritou mais alto, me resgatou e me serviu como muleta. Porém, naquela tarde, braços e ombros cada vez definhavam mais, e meu grande suporte muleta-corpo minguou. Meu sempre expansivo corpo agora chorava o luto da palavra morrida. Eu pedia socorro dentro de mim, presa na penumbra do meu corpo que barganhava e me sufocava. Queria que a Vysyta acabasse o quanto antes. Certa vez, li em algum caderno de lyções que "A palavra é quase sempre a morte do corpo. E o palhaço é o artista do corpo". Mas onde está o palhaço quando o corpo se esmorece, pelo falecimento da palavra?
Pouco menos de uma hora, parei, saí, assisti, voltei, tentei novamente, ondulei, voltei, e voltei, e voltei... O resto da Vysyta foram muitas voltas, até eu encontrar um meninozinho de seus 3 anos, que também não falava. Me escondi num chapéu, com medo de todo o poder que sua grandiosa presença tinha sobre mim. Ele riu. Nesse instante nossos corpos conversaram sem palavras. Tudo apenas na língua do “Tá, tá, tá”, que se transformou em música, dança e risadas. O encontro dos errados. Festejamos os desastres e as frustrações destilados naquele dia, até todos ficarem exaustos no chão.
E exausta no chão, permaneço para sentir cada célula minimamente afetada. Meu corpo padece, cabeça lateja, olhos ardem. Tudo o que compõe minha somática ressoa. Me banho de lágrimas solussantes. Eu me sinto viva ao que me exaure. O pesar de meus tumores me dói, mas não me encarcera: movimenta. Por isso estou aqui, para sair de meu grande aquário bolha. Por isso me visto de azul, não à toa a cor do chakra da garganta, o Vishuddha, dissolvido em turquesa pétrea de Peixes: Inspiro coragem para mergulhar nas águas do medo do universo instável das permissibilidades de um palhaço.
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