quinta-feira, 16 de julho de 2015

Nossa nova dynastya

Anualmente temos a sucessão dos cargos de liderança. Acredito que o caminho natural de um futuro líder nosso é o de (1) persistir no projeto (2) de forma ativa (3) com voz cada vez mais presente. Não tinha ideia quanto tempo levava para se conseguir isso - há alguma cartilha que diga? Imaginava que seria necessário talvez mais de um ano. Mas, a nossa mais nova dinastia mostrou que trezentos e sessenta e cinco dias é mais do que suficiente para gerar sangue nobry nas veyas. 

Vejam só, a nossa nova rainha é uma garota de um ano atrás que, quando os novatos mais artistas e viajantes ficavam contando suas experiências místicas e psicológicas dentro dos jogos de palhaços que íamos convidando a participarem, ela dizia que sentia muito, mas não sentia a mesma coisa que aquele povo. 

Sempre fico receoso com as pessoas que não falam tanto sobre suas experiências internas. Tolice minha. Gostaria de ver nascer neles o que sou: um cara extremamente tagarela sobre meus processos viscerais. Mas, vim sendo essa coruja que fica na sombra do projeto, olhos arregalados bisbilhotando-os. Eis que vejo a moça não-viajante crescer. Talvez vivenciando um primeiro semestre que nem foi tão importante para ela, mas abraçando um segundo semestre em que sua voz espalhava força gradativamente. 

Quase agora, quis ela re-experienciar a oficina de iniciação para os novatos. A mesma de há um ano. Então, ressignificou todo aquele processo e viu o quanto tudo fazia mais sentido. Não esteve presente como uma facilitadora. Com uma bonita humildade, esteve junto com todos os outros, feito todos os outros. Então, lembrei-me da fala de uma ex-líder nossa, a Gaby, que tive o prazer de entrevistar:


A gente percebia que os melhores integrantes (2006-2008?) eram aqueles que mais amavam estar ali, os que mais se dedicavam, e muitas vezes não eram os que eram engraçados, os que faziam as melhores piadas, e tudo. E nem sempre esses mais engraçados eram o que as crianças mais gostavam. Era estar ali, com o desejo de querer ajudar, era o seu... o amar estar ali. Era assim que a coisa fluía durante as visitas, e não só nas visitas, pois o nosso projeto ia além da visita em si. 

Gaby não se achava uma palhaça engraçada, nossa adorável Dra. Marmota. Bem, a vi crescer no palhaço. Eu a achava. Acredito que Ana Flávia tenha a mesma percepção de si: sem graça. Na verdade, ri muito de suas atitudes na nossa recente oficina. De qualquer forma, ela está perfeitamente encontrada nesta fala da Gaby - abstração feita da graça (se ela quiser que polemize isso) - no que tange o estar aquy, presente, ativa, falante, vibrante. O que ela veio se tornando até se tornar nossa lyder. 

O que vi nesta oficina foi de uma grandeza ímpar: descer ao nível dos iniciantes para enxergar as alturas do que já percorreu; voltar ao passado para divisar o futuro que lhe espera e que vinha nebuloso. É assim que uma plebéya se torna raynha. 



Allan Denizard (Dr. Acerola)


quinta-feira, 9 de julho de 2015

Medo, expectativa...coragem!

O nono dia começa, novamente, com movimentos. Eu, participante de apenas um recorte do processo, imaginei que os pinguelins já estivessem próximos dessa coisa toda de andar em movimentos aleatórios. E cara, eu tava certo. Fazer pessoas cansarem nunca foi tão divertido. Pra quem olhava de fora, as partículas se aceleravam rápido e numa aleatoriedade engraçada, com a intensidade sendo ditada pela obra prima instrumental de um certo trio canadense com quarenta anos de história. Os comandos eram dados e recebidos com muita habilidade, estava realmente pleasant to the eye. Mas eu sentia que algo não estava 100% no lugar... Pedi mais intensidade, alterei o nível de altura da interação, aproximei, afastei, instiguei, e tudo foi seguido. “Bom, esse pessoal leva jeito mesmo.”

Mas, ao fazer a transição para o próximo momento, os rostos cansados acusavam algo além de cansaço, um desconforto, uma coisa bem coisada. Não importava no momento, pois eu precisava chamar os pinguelins pra uma aventura. Não tinha a menor ideia de como seria, mas chamei.

Se encontrar no plano imaginativo com você criança, você no fim da vida e você palhaço, foi o que eu imaginava que levaria o grupo a entrar em contato novamente com seus lados sombrios, não conscientes, suas fraquezas e potências que se escondem por debaixo da pele que eu mostro pra todo mundo no meu dia a dia. E por que isso é importante mesmo? Pois nosso encontro da capacitação tem pelo menos um objetivo: nos possibilitar levar um novo encontro à pessoas em situação de adoecimento. Pessoas que estão sendo obrigadas pela vida a se reconhecer como vulneráveis, suscetíveis, mortais. Como foi dito pelo Allan, “a onda do mar arrebenta o casco e arrebata o espírito, quero que ele voe, mas pode vir a cair.” E a capacitação precisa nos derrubar algumas vezes pra que entre na carne do joelho ralado a realidade da queda. O contato é cru, é sincero o suficiente pra dizer pra você: pare de tentar ser e seja.

Só que o grupo foi sábio o suficiente para involuntariamente (ou não), jogar na minha cara que não é bem assim! O grupo entrou num movimento que nas próximas linhas eu vou tentar inutilmente narrar, mas que só pode ser definido como mágico. Só que mágico não é com florezinhas e estrelinhas pululando não, jovem. A magia ali era forte, grossa, com pitadas de magia negra, sombria. O movimento do grupo foi de calar-se diante de tanta força, de tanta informação. A gente desceu até o Hades, passeou pelo inferno da infertilidade, ninguém conseguia falar sobre nada, até que o grupo teve e ideia de falar sobre não falar nada. E ai, depois de se estabacar no chão, o grupo foi sentindo o corpo e reconhecendo as feridas. Quem diabos se importa em encontrar com o meu palhaço ou a falta dele, se eu ainda estou morrendo de medo de não pertencer a essa realidade? Quem quer falar sobre hospital se eu tenho medo de não corresponder as expectativas? Quem vai se abrir para um grupo que agora tem estranhos e está sendo conduzido por um estranho, alguém que nem estava aqui nos outros dias? Quem vai se expor de novo depois de ter se sentido tão exposto ontem?

Como disse, a tentativa de narrar será sempre falha e eu nem lembro a ordem das coisas, mas o processo de cura começou ali: tempo pra pensar, claro, porque não? Se estávamos precisando, tivemos. E parece que algo mudou. Sutilmente, as falas foram reaparecendo, agora sobre o que realmente importava no momento: medo e expectativa. E o grupo aproveitou... sugou até a ultima gota da oportunidade de falar o quão real era aquele nosso encontro, puxando de antes da seleção, fazendo link com outros momentos da vida. E foi da terra arrasada, improdutiva, seca, que surgiu o que eu tinha desejado tanto proporcionar: identificação. “Pera, mas eu também tenho medo, e os antigos tem medo, e o Miná tem medo”. Mas e se a gente se derruba junto e consegue se reconhecer enquanto medroso junto, alguma força pode sair daí. E gente, saiu. Vocês se destruíram pra se construir, numa velocidade tão absurda que só da pra chamar de mágica. O grupo foi mesmo da matéria impura ao ouro numa velocidade que daria inveja ao mais habilidoso dos alquimistas. Falas sinceras, profundas, mas não mais carregadas só de tristeza; risadas, piadas, leveza na densidade daquele assunto. Eu nunca vi nada assim na vida, sério. Vocês são demais... O compartilhamento das experiências foi dando de volta ao grupo a coragem de se encontrar mais e mais. Porém, vocês não pediram “por favor coragem, vem me acudir.” A galera chegou chutando a porta da coragem, todo ferido, e disse "VENHA, AGORA!”. Eu diria até que o grupo pegou o que estava colocando para baixo, o medo, a angústia, tacou sal em cima e comeu, sem pedir licença. E essa violência, essa agressividade saudável que só pode advir de um contato com o meu lado que eu rejeito, minha sombra, foi lindamente metaforizada na atividade seguinte, dos samurais. E nossa... como foi libertador ouvir vocês berrando. Ha!!! Ah... que dia, de verdade. Na atuação em hospitais, sendo ou não Y, eu percebi que se a gente quer levar mesmo a bandeira da humanização, não podemos sempre pedir permissão. O palhaço é também subversivo, revolucionário, num lugar em que tudo é controle, é científico, cada um no seu lugar. Às vezes é preciso arrombar a porta ao invés de bater, e hoje eu senti vocês fazendo isso. A jornada do herói Pinguelyn teve uma conclusão épica, e nosso “season finale” foi tão bem produzido que na metade do episódio parecia que o mal ia ganhar. Mas foi só pra ver se nosso coração aguentava! Passou, relaxem, mas nunca se esqueçam das cicatrizes.

 

Fim

 

P.s.

Esse post scriptum segue um fluxo: se você odeia Rap e/ou musica pop americana: acaba aqui.

Se você acha “Mehhh”, continue lendo, mas sem compromisso.

Se você gosta, vem com o tio:

 

Eu sai de lá e a primeira musica que toca na playlist é Eminem e Sia – Guts over fear.

 

Essa música tem sido significativa nos processos de mudança que estou vivendo no momento, porque eu sou desses que bota vocês pra ouvir rock progressivo e jazz fusion e depois vai ouvir musica pop. Lide com isso.

Mas então. Pra quem não sabe, o Eminem tem toda uma história de superação, problemas muito tensos, pai alcoólatra, transtorno mental na família a torto e a direito, e ele escolheu justamente um dos poucos lugares em que ser branco lhe traria grande discriminação, o Rap. Enfim, tem um filme dele pra quem quiser saber mais, chama “8 mile”.

A Sia é uma grande incógnita pra muitos por que ela é bem loka, não aparece nas câmeras, não se dá bem com a fama e enfim, ela parece ter uma personalidade bem troubled sabe? Mas enfim:

“Guts” é meio ruim de traduzir, é como se fosse coragem, dita informalmente. Em PT-BR a gente tem a expressão “tem que ter estômago”, mas ela fala de uma coragem associada a resistir a coisas que causam nojo, susto ou algo negativo. E ela não tem muito o caráter “nobre” da coragem. Você não escuta ninguém dizendo que o herói teve estômago pra ir enfrentar o vilão, mas em inglês poderia teu um uso parecido do “guts”. Assim, não sei também, não sou native speaker. Aceito correções.

 

Mas então, era só isso: a musica é foda, o clipe é foda, e acho que vale como energia mesmo pra gente que sai desse processo tão profundo. No último verso ele fala de representar de alguma forma toda garota(o) que já desejou ser aceita, que esteve enfraquecida por medos, expectativas e que só quis ser confortado. Acho que vocês tem mais potência de se encontrar com quem está com medo no hospital depois que tiveram toda essa coragem de enfrentar os próprios demônios.

A Sia fala pra gente que ela teve medo de não se achar (e ser achada), de não querer outro round, tentar de novo, de se sentir oprimida (a gente foi o homem raivoso ali algumas vezes, mas acredito que foi necessário). Mas ai ela esgota suas desculpas e decide não mais fugir. Acho simbólico.

E a hora passa a ser agora, e por todas as vezes que nós caímos, por causa delas, agora coloquemos a coragem acima do medo. Ele continuará existindo, e eu posso abraça-lo, brincar com ele e depois deixar ele ir. Mas ele não me controla. Eu tenho coragem de me encontrar.

-Por Humberto Miná

 

Guts over fear – Eminem e Sia. (tradução e seleção do trecho by Miná)

https://www.youtube.com/watch?v=0AqnCSdkjQ0   (clip)

 

So this is for every kid who all's they ever did

(isso é pra todo garoto que tudo o que sempre fez)

Was dreamt that one day they would just get accepted

(foi sonhar que um dia ele seria apenas aceito)

I represent him or her, anyone similar

(Eu represento ele ou ela ou qualquer um parecido)

You are the reason I made this song

(Você é o motivo deu fazer essa música)

Everything you're scared to say

(Tudo que você tiver medo de dizer)

Don’t be afraid to say no more

(Não tenha mais)

...

 

 

I was

Afraid to make a single sound

(Eu estava com medo fazer um barulho de sequer)

Afraid I would never find a way out, out, out

(Medo de nunca achar uma saída)

Afraid I'd never be found

(Medo de nunca ser achada)

I don't wanna go another round

(Eu não quero passar por outro round..)

An angry man's power will shut you up

(O poder de um homem raivoso pode/irá te calar)

Trip wires fill this house with tiptoed love

(Armadilhas preenchem a casa com amor de ponta dos pés)

Run out of excuses for everyone

(Esgotei minhas desculpas para todo mundo)

So here I am and I will not run

(então, estou aqui e não vou mais fugir!)

 

Guts over fear, the time is here

(Coragem acima do medo, a hora é agora)

Guts over fear, I shall not tear

(Coragem acima do medo, não vou chorar)

For all the times I let you push me round

(Por todas as vezes que eu me deixei controlar

And let you keep me down, now I've got

E me deixei derrubar, agora eu coloco)

Guts over fear, guts over fear

(Coragem acima do medo…)

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ser Polvo...

Ser polvo, ter poros, agir em sinceridade.




Mas, tudo isso? Atenção no espaço, no outro com quem jogo, nos outros da plateia com quem posso também jogar, em mim, no jogo, no tempo, nos objetos, no Toinho passando atrás de mim, no “feeling”... Mas, TUDO isso??

E ainda há aqueles que perguntam se não temos nada o que fazer. Meu amigo, se você também se dispusesse a vestir essa menor máscara do mundo comigo, acredite, você não estaria se esforçando em fazer o nada, mas sim fazendo tudo.

E é difícil. Sim, é muito difícil. Cansa, amassa a gente, empurra-nos pra nós mesmos como se estivéssemos dentro de uma bolha que encolhe cada vez mais. Às vezes aperta de um jeito forte, asfixiante, que chega a não caber partes da gente em nós mesmos. Então a gente cospe, a gente deixa escapar certas coisas. A questão é que esse deixar escapar também pode doer, e é também difícil.

É por isso que sempre ouvi, e vou sempre dizer. Palhaço é também destruição. Calma, calma, calma. É destruir-se de forma respeitosa, no seu tempo. Você toma as rédeas dessa destruição, se assim permitir destruir-se respeitosamente, e assim, romper a barreira da bolha que encolhe. Após isso, brincar com aquilo mesmo que tanto me encolhia, reprimia, e até sentir saudade depois de dar um adeus. De novo, não é fácil.

Mas para que haja essa destruição, é preciso ter algo antes construído... sim? Sim, e já há. Vocês, cada um de vocês, Preta, Rafa, Sarah, Vermelha, Ju, Azul, Jucá, Cantal, Lara, Laís, Miná, Af, Mayko, Sebbe, Vanildo, Renan, já têm algo muito bonito em vocês. Nós temos a coragem. A coragem grande de assumir que temos medos. Que sentimos desconforto, que sentimos dúvidas sufocantes, assumimos, enfim, que sentimos.

E é nesse movimento de sinceridade que se inicia uma aproximação consigo. Ser polvo é ter muitas mãos para alcançar tudo no espaço, eu, o outro, o som de catarro escarrado no banheiro, o homem da portaria passando 1m por trás de mim. Tudo isso, ao mesmo tempo agora.

E conseguir assim ser polvo, é estar vazio, com vazios a serem sempre preenchidos, poros que dizem sim ao jogo do outro, que não desistem do jogo, que fazem com que sejamos, nós mesmos, na frente de muitos, ou mesmo de um público formado por uma só criança – o que já é muito para o palhaço, é sinônimo de casa cheia para o espetáculo.

Sendo nós mesmos, agimos na sinceridade, sentimentos sinceramente, mostramos com sinceridade. E não é fácil sermos sincero com um público. Mas o início de tudo isso é sermos sinceros com nós mesmos. Palhaço não é só destruição. Ser palhaço é ter coragem, é se conectar ao espaço e aos outros. Ser palhaço é perceber os detalhes, sentir de forma atenta, intensa. Mas palhaço é, especialmente, aceitação.

Aceitem a angústia que sentem, o medo, a vergonha. Sintam.

E sim, vocês nasceram para isso.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Sobre o cansaço

       De todos os jogos de palhaço que a gente costuma fazer nas ofycynas, acho que o que eu sempre gostei mais foi o de ocupar os espaços, sabe? Não sei, tem alguma coisa de diferente nele que mexe diferente comigo. Hoje, nos colocamos a andar até a exaustão. E que sentimento maravilhoso, esse de exaustão. "Eu me senti exausta, porque eu me entreguei muito, sabe?" Ah!! Que sentimento maravilhoso, esse da exaustão! Da entrega! E entrega ao quê? Ao movimento, à dança, à infinitude do outro, aos infinitos olhares e bom-dias silenciosos, à infinita sala que vai do totó à coluna -respondem com seus pés, olhos, ombros, trejeitos e, por fim, suas bocas. Entrega. Outro sentimento maravilhoso!

     Suam, ofegam, se deitam no chão. Feito velhas meninas com insônia por ter tomado um remédio para suas quase-pneumonias , tendo dormido nem duas horas direito, protestam contra o início do movimento num instante, e no outro, dançam em seus próprios ritmos, sem vergonha quaisquer, pra maior plateia do mundo que os ovaciona enquanto eles fazem seus grand finales (que não necessariamente precisavam ser grand) no minúsculo espaço entre os braços, danças e a coluna o totó e um esbarrão do coleguinha. A sala transpira com eles. Escorrego no seu suor. Ou isso é o mijo do beto?

   A gente ta sempre no espaço, sabe? E nem sempre a gente percebe. Nem sempre a gente percebe que a gente anda. Nem sempre a gente percebe que "caralho, a minha mão fica desse jeito quando eu ando?". Nem sempre a gente percebe o quanto é difícil se equilibrar pra andar. Nem sempre a gente percebe o quão forte bate o coração da gente no nosso peito. Nem sempre a gente percebe quanto é estranho cair. Nem sempre a gente percebe como cair demanda extremo esforço. Respirar demanda extremo esforço. Sentir demanda extremíssimo esforço. Esforço. Força! Exaustão.

   Mas não sei, direito... ao mesmo tempo que o suor pinga do meu nariz e escorre da minha bochecha,  num movimento tão involuntário quanto essa transpiração alguma coisa puxa minhas comissuras labiais (óia o atlas de anatomia!) pra cima num sorriso meio pueril. E eu fico lá, sorrindo que nem imbecil, morto de cansado, transpirando, ofegando, fedendo, nojento véi, com o suor escorrendo pra dentro da boca... suor salgado. Feito água do mar... Ressaca... não, não as ressacas do Cantal. Ressaca de mar mesmo. Aquela força que arrasta, toma pra ela, que faz barulho quando esbarra na orla... Nem sei se faz sentido direito, mas fico com essa imagem na cabeça. É uma força grotesca, que se impõe e chega e pronto! feito o cansaço que a gente sente; Mas também é uma sensação que da um tipo estranho de paz, que nem quando você escuta o barulho das ondas batendo nas pedras do estoril e a água salgada respinga no seu rosto, feito o contentamento que eu sinto depois de dançar e andar e rodar e cair.

  Depois de dançar, parece que o mundo fica mais leve, sabe? Sapatilhas se parecem mais com orelhas de coelho, chapéis se parecem mais com discos voadores e um panda de pelúcia tentando segurar uma caneta... bem, acho que isso sempre vai parecer ridiculamente engraçado. Mas fiquei pensando em como o peso dos nossos corpos exaustos não impediam a leveza da nossas mentes de nos fazer dançar pelas graças e não graças (hilárias) uns dos outros. Não nos impediam de refletir e ser reflexo das emoções uns dos outros. Não nos impediam de rir do nosso próprio ridículo e do nosso próprio fracasso, e mesmo do ridículo e do fracasso do outro. Do mesmo jeito que o nível dois não nos impedia de ocupar completamente o absurdamente gigante espaço em que só cabe euzinho, ou que andar no nível menos três não impede nossos corpos de se esbarrarem uns nos outros.

     No fim... talvez, o que me deixe mais envolvido pela dinâmica de ocupar espaços vazios é o fato de que sempre vai haver espaços vazios, por mais que a gente esteja ocupando todos os espaços. Do mesmo jeito contraditório que há tanta, tanta leveza em tão exaustos corpos.


Tchuuuuuááá faz a onda do mar, batendo na pedra da praia.
Durmo ouvindo o mar e com gosto de sal ainda na boca, durante toda a aula da tarde.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Nova carta para Ana

Essa carta é pra te agradecer, Ana. A sua presença. 

Te insultei tantas vezes, e você voltou. É porque sabia que o insulto era apenas mais um elemento da nossa relação. Nem sei se sabia ao certo disso. Talvez você seja a boba mesmo que suponho e estes insultos apenas passem por você. 

Só em saber que desde aquele dia em que conversamos sobre os seus medos, você não desistiu de visitar e chegou de novo aqui para voltarmos a nos falar. O medo não passa, não é? E diante de tantos pensadores procurando o que é definitivo no homem e falando de tantas virtudes, pergunto-me se não é o medo que, em verdade, nos define. Ele aponta a nossa fragilidade de existir quase não existindo e nos ridiculariza na frente de toda a platéia. O palhaço olha todo tempo para a platéia a fim de averiguar se não está dando uma de bobo, e é nisso que ele é bobo. Mas, sabe o que acho? É nisso que ele é belo, porque desnudo e corajoso para não deixar de viver isso: o que o amedronta. 

Você não deixou de viver o que lhe propus. Quando pergunto se se encontrou, responde: médio. E não é exatamente no meio que eu pedi para você sempre estar? No meio da ponte, passando, sem chegar, e o mundo, no seu meio, no seu seio. Mas, você não faz isso por alguma razão, não é? Apenas faz, e deixa passar. 

Deixe-me lhe dizer um segredo anatômico. Sabe porque o coração é um pouco desviado, em algumas pessoas para esquerda, a maioria, em outras, para a direita? É porque no meio do peito o mundo passa, e Deus afastou um pouco o coração para que fosse apenas roçado pelo mundo e não explodido por ele. Roçado, então, o mundo mancha o coração, traz impurezas, as de todas as emoções, leva a vida, até a última gota. É então quando a gente se esgota e o coração pára. Pára? Não, Ana. O coração não pára. Eis o nosso erro. Achar que o coração são aquelas quatro câmaras. O coração passa pelo repouso e segue com o mundo na cauda de seu fluir. 

Olha esse ar que passa entre os dentes das crianças. De tanto gargalhar pode perceber que boa parte delas tem os dentes erodidos ou afastados. É o mesmo princípio. Os olhos sempre úmidos, de chorar. São as duas forças que brigam dentro e fora de nós: o mundo e o coração. Até que aprendamos a deixar passar, acontecer e se entregar. 

É difícil, Ana. Mas, que bom que você voltou para eu te insultar. É quando, então, a lágrima escorre e posso garimpar as histórias que o rio trouxe lá da montanha onde te deixei.

Veja o que aconteceu conosco naquele tempo. Parece mais lógico ao chegar aqui embaixo de novo, não é? Não é lógico, Ana. É novo. 

sábado, 4 de julho de 2015

São tempos de crise

Acho que estou em crise, na verdade, pra variar, estou confusa. Bem-vinda ao Y. Quando comecei o curso de psicologia ouvi inúmeras vezes que eu entraria em crise em algum ponto do curso, naquelas crises de existência que parece que o pessoal aumenta só pra piorar o frio na barriga de ser caloura, "mas essa crise vem lá pro quinto semestre só, relaxa". Relaxa. Dessa última vez foi meu aviso pra mim mesma quando disseram "BRAGATUKI" - tradução: fecha os olhos e passa pela corda -. Não quero, não quero, não quero. Fechei e fui. Hoje, meu alívio de ficar de olhos abertos deu espaço pra uma crise: preciso fechar os olhos mais vezes. Achei que a crise viria no meio das mil psicologias que existem e ela veio no meio da área de saúde, com suas medicinas e odontologias, com os músculos que eu não faço ideia dos nomes, mas na brincadeira eu decidi ser a médica, logo, esse músculo virou osso (e, sério, ainda não sei falar o nome daquilo). Quando a cidade acorda pra se mexer da forma que tiver vontade, pra pular tentando encontrar sintonia, não ser líder nem seguidor, que tal sermos um só. Deparamos-nos com o soumos. É necessário olhar nos olhos, mas também é necessário fechar os olhos e "valha, eu fui de olho fechado mesmo". Risos. O que causou esse riso? Discorra sobre. Foi a quebra de expectativa... Ops... O inesperado... Não, pera... Foi o ponto do soumos, talvez. Foi o curtir do meu eu, com o que me pertence e aquilo que não me pertence e que também sou eu, e o curtir do nós, que nos faz humanos e conectados. Mas conectados em que frequência? Talvez todos de uma vez, talvez de dois em dois ou três ou mais... Ir por sentir que a outra pessoa vai andar, por supor que o outro vai, por esperar que alguém siga, por uma força que nos empurra, por algo que enche e depois de cheio damos o primeiro passo ou pela minha simples vontade de ir. Tem coisa que é difícil de explicar. Parece um discurso meio louco? Juro que não veio de um estudante do CH! Temos todos o direito e a beleza de "viajar" e acrescentar ao outro. Inclusive acrescentar uma venda metafórica e totalmente voluntária nos olhos, se for pra fazer sentir mais esse soumos (sou+somos).

Conversa de Bêbado

Chegamos bêbados de ontem.

Feito gari, venho nessa sina de polir os cristais que são esses novos vizynhos, recolher a sujeira dos sentidos, ofertá-los a certa deusa a quem prestamos culto, que paira feito lua sobre nós, e em sua maviosa narração nos encanta, nos dá vida e nos mata da forma mais cruel, sorvendo o vinho de nossas veias, jogando-nos - co(r)pos cristais - no círculo de tudo para ressurgir mais ali, e assim em diante, até que o palhaço se insurja.

Nas espirais de sua dança, cuja perna em forma de dragão corta os ares em suas diversas esferas, experienciamos a loucura de amar a três, a doçura de amar as três. Já quisemos viver o amor tranquilo de uma família esperada, mas que não vingou, porque o desespero das vontades borbulha mais que essa cerveja louca distribuída nessas bodegas velhas. 

Por falar em velha. Já prestaram atenção o quanto de cachaça escorre pelos olhos daquela senhora que só ama aos gatos? Fixem em sua neta, tenham piedade da professorinha da neta, e lembrem da prostituta que entregou sua filha aos gatos, virou a neta. Quantas histórias assim não encontro aterradas nas sacolas que dormem na frente das casas!

Falei sobre o quanto nos embriagamos. E o quanto da sepultura do nosso eu cotidiano desabrocha, rasgando a pedra de nossos papéis sociais, em um todo tão contínuo que mais parece que somos um - soumos.

Talvez não me entendam. Antes de ontem dormi homem, despertei mulher, hoje sou...mos. Quase nesse instante, criança, e agora torno a ser...mos.

Pelo lixo das pessoas, nestes últimos dez anos, fui catando histórias, e encontrando vida. Sujo e fedorento da experiência de oito gerações, já me deram uma filha que mal gosta de mim. O nome dela é Prisão, que vive em disputa com a Liberdade, filha concebida em meu ventre pela alquimia dos ventos.

A velha e seus gatos, lá imaginava que seria uma presença insistente ao redor de nós. E não é que olhá-la me deixa mais calmo. Acho que são seus pêlos.

Deixe-me lhes contar mais algo enquanto derramo mais essa dose de palavras. É sobre os cristais: percebi que alguns, quando os pulo demais - serão delírios? - vejo o Cristo. Alguns cristais, polidos demais, o Cristo. É coisa bonita de se ver. É de onde menos se espera a salvação: da chata do telefone que já ouviu de todos um pouco. Deveria conversar mais com ela. Tem um pouco de mim. Vai se infectando dos dejetos verbais de todos da cidade, e ainda assim não quer a morte deles. 

Não é só nela que vi isso. Vários cristãos já habitaram por estas casas. Alguém ouve seus passos? Andam leves, bailarinos. 

Bem diverso de mim. Gordo, barbudo, gari. Não me ressinto dessa profissão. Mesmo em outras vilas, meu ofício é de recolher vísceras, insinerar males. Já quis ser padre um dia. Não para queimar pecadores, combater devassidão. Para espalhar amor e união. Terminei pai-lhaço, espanando gerações. Zelando corações.

Ao final, quis falar alguma coisa, no concílio das gentes. Como disse o oráculo, uma energia estranha nos circundava. Não era de morte, como pensávamos, era de sobre-vida, vida que volvia sobre a outra, de tal forma que o que eu queria falar se havia escapulido da boca da puta forasteira. Uma fala simples, um convite breve:

- Guarda esse sentimento, gata! Tudo isso você vai ver na visita.

A criança era a assassina. Quase ninguém desconfiou. Como poderia a inocência...? Tolos! Não são exatamente elas que nos vêm matando estes anos todos? E, nascer de novo. 


sexta-feira, 3 de julho de 2015

Milagre

   Não queria tá escrevendo como foi ontem pra mim, mas é que acho que fosse mandar áudio ia ser bem mais fácil. Por isso, cá estou, escrevendo como eu não queria tá escrevendo, médio com preguiça. EU JÁ PEGUEI ESSE NEGÓCIO DE “MÉDIO” TAMBÉM??? Merda... Tudo por causa de linguagem. Tudo por causa de um corpo Vanildo que insiste em pensar, em se expressar, médio. E é importante que se insista, o “pensar corpo” é necessário e fala muito. Linguagem corporal ou mímica? Não sei, e também não sei até que ponto é importante diferenciar. O que é incrível e necessário são comunicações, pontes, encontros, onde se encontrar é mais do que buscar entender. Encontrar-se todo, presente, já é entender. O entender-se apenas vem, vestido de milagre, numa ponte em que eu entendo que Sherlock Holmes agora usa binóculos e que banana = minions. Como diz um gordinho barbudo, isso tudo é “milagre”, é ser possível se comunicar, entender. Se comunicar com uma segurada forte de mão em uma conexão de choques. Se comunicar com duas pombas brancas, que eram uma só, únicas no mundo, todo dia indo ao nosso encontro. Se comunicar com uma criança que se esconde, e se aproxima, e corre, e tem medo, e ri, e chora, sente. E é criança. Brinca.

    O dia de ontem me fez lembrar hoje de uma dança, dança de uma conversa incrível. Tem grito, tem pedido de socorro, tem desculpas, tem adeus, tudo muito alto e intenso, sem nenhuma palavra dita sequer.

Sobre expectativas

Pense num baita dum conselho idiota!!!
"Não crie expectativas!"
Como assim não criar expectativas? Não é exatamente algo que a gente controle. É só um negócinho que ta lá, na caixola, morto de expectativa para que algo o tire desse estado expectante e bote-o a funcionar, criando expectativas na gente, que nunca está esperando esse negócinho chegar, mas sempre tem a companhia dele quando algo (não) tá pra acontecer...ou talvez a gente esteja sempre esperando alguma coisa, e só perceba as vezes...ou talvez ainda...

"É o que Mayko? Ta viajando igual o Allan é?"

Sei lá! Mas me incubiram da tarefa de co-coordenar a ofycyna hoje, assim do nada, no meio de uma atípica prova que eu fazia nas férias. E enquanto a expectativa de férias felizes falecia junto com todos os vários percentos dos corações que tem reação imunológica pós transplante (eu devia saber esse percentual pra prova), nascia a gigante expectativa diante da responsabilidade recém entregue de substituir o Allan.

E... bem, talvez quebrar essa expectativa não gere graça nenhuma.

Mas  talvez, como diz o Canjal "a gente tem que se tacar mesmo". E se tacando entre James Bond e Caça Fantasmas, Assaltantes de Geladeira ou Matadores de Aula, Minios e Velas de Giz de Cera a gente sorri e se empolga e comemora cada vitória e se frustra a cada derrota e se arrasta no chão, e pula, e faz barulho de máquina-porco-de-lavar e até esquece o que é que tava esperando. A expectativa meio que fica em segundo plano. E com a pretensão de quem não precisa dizer nada, o jogo de mimica rendeu assunto pra uma tarde toda.

Joga o adulto que é capaz de, como adulto que é, ver a simbologia por trás do jogo como nunca tinha visto até ser o adulto que se tornou  - "e apesar de bom isso pode ser perigoso!", alerta um deles. Mas "lá, na hora," diz a menina de cabelo azul, "eu não to nem pensando em significado com cabeça de adulto nenhum não, eu tô é brincando que nem quando criança". E vão se amolecendo as cordas, tão duras de pular, do primeiro dia.

E eu, que até a hora da ofycyna estava tão cheio de expectativas a cumprir e expectativas a não frustrar acabei me divertindo, também, quando a hora chegou. E eu nem sei se as expectativas foram quebradas ou só esquecidas, só sei que a graça tava lá, na leveza daquela roda com eles, ouvindo eles falarem sobre o corpo, as sensações e como eles se conectaram entre si. E eu sorria, pensando em como eles estavam me capacitando e como eu aprendia com eles. Sorria vendo novas cores surgirem na tela de suas falas. Sorria ao ver os corpos se atiçando pra falar. E sorria principalmente em vê-los sorrirem ao descobrir juntos sentidos maiores pra tudo aquilo que eles estavam vivendo, passando e construindo.

E se o sentido que eles descobriam era certo ou errado? Pouco importa.
Importam antes os sorrisos! Até porque eu não tinha ideia da resposta!

E feito suor das mãos que se apertavam num fluxo confuso e sem jeito, as expectativas escorreram de mim e eu pude brincar e sorrir com todos eles, mais leve. E, no fim, talvez o conselho não seja sobre criar expectativas ou não, mas sobre não esquecer de viver a leveza, por conta delas.

E se por acaso a gente ria junto por efeito do já esperado "inesperado", ou pela quebra da expectativa (perdoem o pleonasmo, vocês não esperavam por isso!) ou ainda pela piada sem graça e mal contada que alguém achou que devia contar, eu já nem lembro mais.
"Mas tem graça!!" enfatiza a Ruivinha.

"Graça... que palavra bonita" eu pensei!
-TEM TANTO!

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Cycatryzes

Uma das mais gostosas atividades do dia é ser a sombra de meu filho. Desde que ele começou a dar passos, o solto no mundo e o vou seguindo. Vez ou outra caía, e eu o queria tomar nos braços, tirá-lo da terra. Ele olhava para mim, e eu escondia o medo que tive de sua queda. Então, apenas se levantava e seguia. Hoje, ele não olha. Cai, se eu não for pegá-lo - eu, o cara que sempre estou logo atrás dele - levanta e segue: o mundo é dele. Até que suas pernas se cansem, e aos meus braços insistente queira ascender. Até que suas pernas sejam forte o suficiente para não mais querer. 

Falamos tanto sobre cicatrizes hoje. Não foi um dedo fraturado (ainda acho que a Ana Flávia merecia uma radiografia), foi uma cabeça quase fendida. Os cuidados se aglutinaram ao redor de Juliana. A agudeza da dor a fez chorar, mas ela está aqui. Vocês estão longe de perceber o que isso significa. Está aqui. E, do nosso corpo, contamos as histórias. A arqueologia de nossos acidentes, de nossas falhas, o quanto sobrevivemos a uma cama insuficientemente larga, a um grafite transpassado no rosto, um lápis que não cegou um olho, um chão que aparou a queda de um queixo, um portão esmagando um dedo, um poste que não queria servir para apoiar bananeira e um graças a Deus por não haver uma banana ali no meio das pernas para o poste amassar. 

Parece que essas feridas funcionaram. Ao jogo da bandeirinha, eram todos quietos em cada "se". A tensão explodindo. A vontade de querer continuar vivo e vencedor exalando pelos poros. Coisa bem diferente de quando demos por nós que à infância, no geral, a coisa fluía mais, pensando menos, pois, entregue ao jogo, o corpo esquecia o espírito meditativo atrás. Resultado: sangue, pus, salmora, exposição das intimidades da pele. 

Foi do mesmo jeito, em um nível mais sutil, ao suspender o som do chão fustigado pela corda, e se expandir na atenção direcionada para o outro, o dialeto, a voz, a única luz de cegos amedrontados. Não vêem nisso algum processo? Todos juntos antes: chegar neles era um alívio. O outro do outro lado agora: chegar nele, um desafio. Chegar lá, então e enfim, é um alívio ou um desafio? Chegar no outro: cicatrizes - que foram, que virão. Cada um tem um relacionamento para contar, re-lacionamento, lacionamento, laço, lacerado. 

O que as crianças tem a nos ensinar sobre isso? Por não terem tantas cicatrizes, todas ainda por inaugurar, seguem costelas desnudas, mãos presas na calcinha, alvo fácil para a lâmina da vida transpassar o pulmão sem dó, que dor! 

- Eu não iria se soubesse que havia lâminas!
- Ruiva moça dos olhos vigilantes, já foi. 

Respirem, 1... 2... 3..., a lâmina passa, 4... 5... 6..., a respiração volta, 7... 8... 9..., olha o ritmo... da vida... e volta... a brincar... 10. Mas, brinquem com gosto, do outro lado tem o mundo. Detrás, as lembranças de todas as brincadeiras que suamos juntos.   

Moscas de Fruta não valem nada

Estamos ao segundo dia da ofycyna. Estou mais bruto, mais branco. Estou com cabelos mais brancos, com mais bucho. Não estou sozinho. 

Bonito ver que a corda gira, o tempo passa, e a solidão não aumenta. As horas despendidas girando o mundo nos converteram em maior amante da esperança de que há como alegrar-se fora dela. Fora de quem? Dela, da esperança. Da espera de que tudo mude. Vou me alegrando com o próprio girar do mundo. 

- Que vão! Que tolo!

Em breve meu filho terá 50 anos, selará meus olhos com um beijo, espetará a barba numa pele fria. Será minha vez de ser conduzido num giro, atravessando o umbral de um pórtico em que antes, logo antes, estava escrito "nunca mais", "no more...". Antes de entrar lá, um vento lambe o rosto, uma mosca de fruta sobrevoa os olhos. 

- Onde estão todos, meu Deus! 

É Deus quem responde:

- Estamos aqui!

Encaro o outro lado, que sempre se agitou na frente destes olhos de carne, ainda que cegos, e o que vejo? Velas amorosas a me ferir os olhos, e todos que até bem pouco eram meu apoio, minha mancha, minha marca, meu porto seguro, a me acolher de novo e com palmas e com um artesanal bolo de limão, cuja calda escorre feito o véu da vida, devassada pelos mil dedos dos gulosos.

Sabe como estamos apreendendo as coisas? Com os nervos e as entranhas. O corpo dói, a queimadura não fecha, e essa brecha emenda com a abertura que nos transpassa e provoca vômito. Uma garota havia definido bem, em outra geração: vomito de arco-irís. Difícil definir o encontro das cores, esmaecem-se até se fundir no todo.

Roda o arco-íris feito toposférica corda. As estrelas contornam os corpos, deixam-nos pontilhados. Leveza. Quero ajudá-los a passar pela corda. Maldita mosca! Sua existência é dizer em meu ouvido:

- Deixe-nozzzzzz zzzzzzentir a corda...

Fico me perguntando até onde a inutilidade essencial dessa mosca vai me levar, já que me trouxe de tanto lugar. Lá!