Essa carta é pra te agradecer, Ana. A sua presença.
Te insultei tantas vezes, e você voltou. É porque sabia que o insulto era apenas mais um elemento da nossa relação. Nem sei se sabia ao certo disso. Talvez você seja a boba mesmo que suponho e estes insultos apenas passem por você.
Só em saber que desde aquele dia em que conversamos sobre os seus medos, você não desistiu de visitar e chegou de novo aqui para voltarmos a nos falar. O medo não passa, não é? E diante de tantos pensadores procurando o que é definitivo no homem e falando de tantas virtudes, pergunto-me se não é o medo que, em verdade, nos define. Ele aponta a nossa fragilidade de existir quase não existindo e nos ridiculariza na frente de toda a platéia. O palhaço olha todo tempo para a platéia a fim de averiguar se não está dando uma de bobo, e é nisso que ele é bobo. Mas, sabe o que acho? É nisso que ele é belo, porque desnudo e corajoso para não deixar de viver isso: o que o amedronta.
Você não deixou de viver o que lhe propus. Quando pergunto se se encontrou, responde: médio. E não é exatamente no meio que eu pedi para você sempre estar? No meio da ponte, passando, sem chegar, e o mundo, no seu meio, no seu seio. Mas, você não faz isso por alguma razão, não é? Apenas faz, e deixa passar.
Deixe-me lhe dizer um segredo anatômico. Sabe porque o coração é um pouco desviado, em algumas pessoas para esquerda, a maioria, em outras, para a direita? É porque no meio do peito o mundo passa, e Deus afastou um pouco o coração para que fosse apenas roçado pelo mundo e não explodido por ele. Roçado, então, o mundo mancha o coração, traz impurezas, as de todas as emoções, leva a vida, até a última gota. É então quando a gente se esgota e o coração pára. Pára? Não, Ana. O coração não pára. Eis o nosso erro. Achar que o coração são aquelas quatro câmaras. O coração passa pelo repouso e segue com o mundo na cauda de seu fluir.
Olha esse ar que passa entre os dentes das crianças. De tanto gargalhar pode perceber que boa parte delas tem os dentes erodidos ou afastados. É o mesmo princípio. Os olhos sempre úmidos, de chorar. São as duas forças que brigam dentro e fora de nós: o mundo e o coração. Até que aprendamos a deixar passar, acontecer e se entregar.
É difícil, Ana. Mas, que bom que você voltou para eu te insultar. É quando, então, a lágrima escorre e posso garimpar as histórias que o rio trouxe lá da montanha onde te deixei.
Veja o que aconteceu conosco naquele tempo. Parece mais lógico ao chegar aqui embaixo de novo, não é? Não é lógico, Ana. É novo.
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