sábado, 4 de julho de 2015

Conversa de Bêbado

Chegamos bêbados de ontem.

Feito gari, venho nessa sina de polir os cristais que são esses novos vizynhos, recolher a sujeira dos sentidos, ofertá-los a certa deusa a quem prestamos culto, que paira feito lua sobre nós, e em sua maviosa narração nos encanta, nos dá vida e nos mata da forma mais cruel, sorvendo o vinho de nossas veias, jogando-nos - co(r)pos cristais - no círculo de tudo para ressurgir mais ali, e assim em diante, até que o palhaço se insurja.

Nas espirais de sua dança, cuja perna em forma de dragão corta os ares em suas diversas esferas, experienciamos a loucura de amar a três, a doçura de amar as três. Já quisemos viver o amor tranquilo de uma família esperada, mas que não vingou, porque o desespero das vontades borbulha mais que essa cerveja louca distribuída nessas bodegas velhas. 

Por falar em velha. Já prestaram atenção o quanto de cachaça escorre pelos olhos daquela senhora que só ama aos gatos? Fixem em sua neta, tenham piedade da professorinha da neta, e lembrem da prostituta que entregou sua filha aos gatos, virou a neta. Quantas histórias assim não encontro aterradas nas sacolas que dormem na frente das casas!

Falei sobre o quanto nos embriagamos. E o quanto da sepultura do nosso eu cotidiano desabrocha, rasgando a pedra de nossos papéis sociais, em um todo tão contínuo que mais parece que somos um - soumos.

Talvez não me entendam. Antes de ontem dormi homem, despertei mulher, hoje sou...mos. Quase nesse instante, criança, e agora torno a ser...mos.

Pelo lixo das pessoas, nestes últimos dez anos, fui catando histórias, e encontrando vida. Sujo e fedorento da experiência de oito gerações, já me deram uma filha que mal gosta de mim. O nome dela é Prisão, que vive em disputa com a Liberdade, filha concebida em meu ventre pela alquimia dos ventos.

A velha e seus gatos, lá imaginava que seria uma presença insistente ao redor de nós. E não é que olhá-la me deixa mais calmo. Acho que são seus pêlos.

Deixe-me lhes contar mais algo enquanto derramo mais essa dose de palavras. É sobre os cristais: percebi que alguns, quando os pulo demais - serão delírios? - vejo o Cristo. Alguns cristais, polidos demais, o Cristo. É coisa bonita de se ver. É de onde menos se espera a salvação: da chata do telefone que já ouviu de todos um pouco. Deveria conversar mais com ela. Tem um pouco de mim. Vai se infectando dos dejetos verbais de todos da cidade, e ainda assim não quer a morte deles. 

Não é só nela que vi isso. Vários cristãos já habitaram por estas casas. Alguém ouve seus passos? Andam leves, bailarinos. 

Bem diverso de mim. Gordo, barbudo, gari. Não me ressinto dessa profissão. Mesmo em outras vilas, meu ofício é de recolher vísceras, insinerar males. Já quis ser padre um dia. Não para queimar pecadores, combater devassidão. Para espalhar amor e união. Terminei pai-lhaço, espanando gerações. Zelando corações.

Ao final, quis falar alguma coisa, no concílio das gentes. Como disse o oráculo, uma energia estranha nos circundava. Não era de morte, como pensávamos, era de sobre-vida, vida que volvia sobre a outra, de tal forma que o que eu queria falar se havia escapulido da boca da puta forasteira. Uma fala simples, um convite breve:

- Guarda esse sentimento, gata! Tudo isso você vai ver na visita.

A criança era a assassina. Quase ninguém desconfiou. Como poderia a inocência...? Tolos! Não são exatamente elas que nos vêm matando estes anos todos? E, nascer de novo. 


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