quinta-feira, 9 de julho de 2015

Medo, expectativa...coragem!

O nono dia começa, novamente, com movimentos. Eu, participante de apenas um recorte do processo, imaginei que os pinguelins já estivessem próximos dessa coisa toda de andar em movimentos aleatórios. E cara, eu tava certo. Fazer pessoas cansarem nunca foi tão divertido. Pra quem olhava de fora, as partículas se aceleravam rápido e numa aleatoriedade engraçada, com a intensidade sendo ditada pela obra prima instrumental de um certo trio canadense com quarenta anos de história. Os comandos eram dados e recebidos com muita habilidade, estava realmente pleasant to the eye. Mas eu sentia que algo não estava 100% no lugar... Pedi mais intensidade, alterei o nível de altura da interação, aproximei, afastei, instiguei, e tudo foi seguido. “Bom, esse pessoal leva jeito mesmo.”

Mas, ao fazer a transição para o próximo momento, os rostos cansados acusavam algo além de cansaço, um desconforto, uma coisa bem coisada. Não importava no momento, pois eu precisava chamar os pinguelins pra uma aventura. Não tinha a menor ideia de como seria, mas chamei.

Se encontrar no plano imaginativo com você criança, você no fim da vida e você palhaço, foi o que eu imaginava que levaria o grupo a entrar em contato novamente com seus lados sombrios, não conscientes, suas fraquezas e potências que se escondem por debaixo da pele que eu mostro pra todo mundo no meu dia a dia. E por que isso é importante mesmo? Pois nosso encontro da capacitação tem pelo menos um objetivo: nos possibilitar levar um novo encontro à pessoas em situação de adoecimento. Pessoas que estão sendo obrigadas pela vida a se reconhecer como vulneráveis, suscetíveis, mortais. Como foi dito pelo Allan, “a onda do mar arrebenta o casco e arrebata o espírito, quero que ele voe, mas pode vir a cair.” E a capacitação precisa nos derrubar algumas vezes pra que entre na carne do joelho ralado a realidade da queda. O contato é cru, é sincero o suficiente pra dizer pra você: pare de tentar ser e seja.

Só que o grupo foi sábio o suficiente para involuntariamente (ou não), jogar na minha cara que não é bem assim! O grupo entrou num movimento que nas próximas linhas eu vou tentar inutilmente narrar, mas que só pode ser definido como mágico. Só que mágico não é com florezinhas e estrelinhas pululando não, jovem. A magia ali era forte, grossa, com pitadas de magia negra, sombria. O movimento do grupo foi de calar-se diante de tanta força, de tanta informação. A gente desceu até o Hades, passeou pelo inferno da infertilidade, ninguém conseguia falar sobre nada, até que o grupo teve e ideia de falar sobre não falar nada. E ai, depois de se estabacar no chão, o grupo foi sentindo o corpo e reconhecendo as feridas. Quem diabos se importa em encontrar com o meu palhaço ou a falta dele, se eu ainda estou morrendo de medo de não pertencer a essa realidade? Quem quer falar sobre hospital se eu tenho medo de não corresponder as expectativas? Quem vai se abrir para um grupo que agora tem estranhos e está sendo conduzido por um estranho, alguém que nem estava aqui nos outros dias? Quem vai se expor de novo depois de ter se sentido tão exposto ontem?

Como disse, a tentativa de narrar será sempre falha e eu nem lembro a ordem das coisas, mas o processo de cura começou ali: tempo pra pensar, claro, porque não? Se estávamos precisando, tivemos. E parece que algo mudou. Sutilmente, as falas foram reaparecendo, agora sobre o que realmente importava no momento: medo e expectativa. E o grupo aproveitou... sugou até a ultima gota da oportunidade de falar o quão real era aquele nosso encontro, puxando de antes da seleção, fazendo link com outros momentos da vida. E foi da terra arrasada, improdutiva, seca, que surgiu o que eu tinha desejado tanto proporcionar: identificação. “Pera, mas eu também tenho medo, e os antigos tem medo, e o Miná tem medo”. Mas e se a gente se derruba junto e consegue se reconhecer enquanto medroso junto, alguma força pode sair daí. E gente, saiu. Vocês se destruíram pra se construir, numa velocidade tão absurda que só da pra chamar de mágica. O grupo foi mesmo da matéria impura ao ouro numa velocidade que daria inveja ao mais habilidoso dos alquimistas. Falas sinceras, profundas, mas não mais carregadas só de tristeza; risadas, piadas, leveza na densidade daquele assunto. Eu nunca vi nada assim na vida, sério. Vocês são demais... O compartilhamento das experiências foi dando de volta ao grupo a coragem de se encontrar mais e mais. Porém, vocês não pediram “por favor coragem, vem me acudir.” A galera chegou chutando a porta da coragem, todo ferido, e disse "VENHA, AGORA!”. Eu diria até que o grupo pegou o que estava colocando para baixo, o medo, a angústia, tacou sal em cima e comeu, sem pedir licença. E essa violência, essa agressividade saudável que só pode advir de um contato com o meu lado que eu rejeito, minha sombra, foi lindamente metaforizada na atividade seguinte, dos samurais. E nossa... como foi libertador ouvir vocês berrando. Ha!!! Ah... que dia, de verdade. Na atuação em hospitais, sendo ou não Y, eu percebi que se a gente quer levar mesmo a bandeira da humanização, não podemos sempre pedir permissão. O palhaço é também subversivo, revolucionário, num lugar em que tudo é controle, é científico, cada um no seu lugar. Às vezes é preciso arrombar a porta ao invés de bater, e hoje eu senti vocês fazendo isso. A jornada do herói Pinguelyn teve uma conclusão épica, e nosso “season finale” foi tão bem produzido que na metade do episódio parecia que o mal ia ganhar. Mas foi só pra ver se nosso coração aguentava! Passou, relaxem, mas nunca se esqueçam das cicatrizes.

 

Fim

 

P.s.

Esse post scriptum segue um fluxo: se você odeia Rap e/ou musica pop americana: acaba aqui.

Se você acha “Mehhh”, continue lendo, mas sem compromisso.

Se você gosta, vem com o tio:

 

Eu sai de lá e a primeira musica que toca na playlist é Eminem e Sia – Guts over fear.

 

Essa música tem sido significativa nos processos de mudança que estou vivendo no momento, porque eu sou desses que bota vocês pra ouvir rock progressivo e jazz fusion e depois vai ouvir musica pop. Lide com isso.

Mas então. Pra quem não sabe, o Eminem tem toda uma história de superação, problemas muito tensos, pai alcoólatra, transtorno mental na família a torto e a direito, e ele escolheu justamente um dos poucos lugares em que ser branco lhe traria grande discriminação, o Rap. Enfim, tem um filme dele pra quem quiser saber mais, chama “8 mile”.

A Sia é uma grande incógnita pra muitos por que ela é bem loka, não aparece nas câmeras, não se dá bem com a fama e enfim, ela parece ter uma personalidade bem troubled sabe? Mas enfim:

“Guts” é meio ruim de traduzir, é como se fosse coragem, dita informalmente. Em PT-BR a gente tem a expressão “tem que ter estômago”, mas ela fala de uma coragem associada a resistir a coisas que causam nojo, susto ou algo negativo. E ela não tem muito o caráter “nobre” da coragem. Você não escuta ninguém dizendo que o herói teve estômago pra ir enfrentar o vilão, mas em inglês poderia teu um uso parecido do “guts”. Assim, não sei também, não sou native speaker. Aceito correções.

 

Mas então, era só isso: a musica é foda, o clipe é foda, e acho que vale como energia mesmo pra gente que sai desse processo tão profundo. No último verso ele fala de representar de alguma forma toda garota(o) que já desejou ser aceita, que esteve enfraquecida por medos, expectativas e que só quis ser confortado. Acho que vocês tem mais potência de se encontrar com quem está com medo no hospital depois que tiveram toda essa coragem de enfrentar os próprios demônios.

A Sia fala pra gente que ela teve medo de não se achar (e ser achada), de não querer outro round, tentar de novo, de se sentir oprimida (a gente foi o homem raivoso ali algumas vezes, mas acredito que foi necessário). Mas ai ela esgota suas desculpas e decide não mais fugir. Acho simbólico.

E a hora passa a ser agora, e por todas as vezes que nós caímos, por causa delas, agora coloquemos a coragem acima do medo. Ele continuará existindo, e eu posso abraça-lo, brincar com ele e depois deixar ele ir. Mas ele não me controla. Eu tenho coragem de me encontrar.

-Por Humberto Miná

 

Guts over fear – Eminem e Sia. (tradução e seleção do trecho by Miná)

https://www.youtube.com/watch?v=0AqnCSdkjQ0   (clip)

 

So this is for every kid who all's they ever did

(isso é pra todo garoto que tudo o que sempre fez)

Was dreamt that one day they would just get accepted

(foi sonhar que um dia ele seria apenas aceito)

I represent him or her, anyone similar

(Eu represento ele ou ela ou qualquer um parecido)

You are the reason I made this song

(Você é o motivo deu fazer essa música)

Everything you're scared to say

(Tudo que você tiver medo de dizer)

Don’t be afraid to say no more

(Não tenha mais)

...

 

 

I was

Afraid to make a single sound

(Eu estava com medo fazer um barulho de sequer)

Afraid I would never find a way out, out, out

(Medo de nunca achar uma saída)

Afraid I'd never be found

(Medo de nunca ser achada)

I don't wanna go another round

(Eu não quero passar por outro round..)

An angry man's power will shut you up

(O poder de um homem raivoso pode/irá te calar)

Trip wires fill this house with tiptoed love

(Armadilhas preenchem a casa com amor de ponta dos pés)

Run out of excuses for everyone

(Esgotei minhas desculpas para todo mundo)

So here I am and I will not run

(então, estou aqui e não vou mais fugir!)

 

Guts over fear, the time is here

(Coragem acima do medo, a hora é agora)

Guts over fear, I shall not tear

(Coragem acima do medo, não vou chorar)

For all the times I let you push me round

(Por todas as vezes que eu me deixei controlar

And let you keep me down, now I've got

E me deixei derrubar, agora eu coloco)

Guts over fear, guts over fear

(Coragem acima do medo…)

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