domingo, 6 de agosto de 2017

Segundo dia ou Abraçar a coluna

Hoje tive vontade de abraçar a coluna. Vai ser um relato diferente este. Aproveito-me do que vivo com vocês para falar de mim. Quem não faz isso enquanto escreve ignora o poder de terra que tem as letras, para sepultar sentimentos, florescer ânimo.

Meu filho maior, como deu pra perceber no texto anterior, requer muita atenção. É que além de ter autismo, vem com ciúmes do menor. A família não é tão grande para revezar cuidados. Minha mãe precisa de mais cuidados que ele. Resta-nos a avó materna que também vem tendo seus limites. 

Aprender sobre o brincar no Projeto Y me fez perceber que não é um simples "deixar acontecer". Existe uma preparação e uma prontidão para o jogo que nos faz suar. Uma vontade e um esforço para não deixar a coisa cair que faz transudar. As pernas tremem, o coração galopa antes de visitar. O véu do templo do mundo se rasga, as pessoas se multiplicam. Brincar com crianças com limitações parece ser a mais difícil das coisas, e é a mais leve, quando acontece de acontecer.  

As reflexões de roda das oficinas destroem as ilusões de que palhaço é aquela coisa fofa de só fazer graça. O ambiente quasi-controlado traz a ilusão de que é só jogar e pronto. Tem algo entre estas duas coisas que nos escapa: é o universo do outro com quem queremos brincar. 

O maior milagre da vida é conseguir entender o outro. O mais óbvio é brigar. Como algo que nasce em você consegue se fazer inteligível em mim. É fácil quando a linguagem consensual das palavras que aprendemos juntos nesse idioma compartilhado se fazem de meio. É fácil quando a lógica do cotidiano também se interpõe. E quando elas falham? Quando a criança fala uma língua que não te soa natural aos ouvidos, e quando a lógica dela escapa continuamente pelas tuas mãos feito areia? 

Às vezes fazê-la feliz é só abrir a portinhola que a protege (e a aprisiona) dentro de casa. Ele (falo agora de meu filho) é tão frágil. Dia desses pulou em um brinquedo inocente e sangrou o lábio. Já tive três vezes o sangue dele em minhas mãos. Mas, é preciso deixar que ele corra, que se jogue, que escale. É preciso às vezes fechar os olhos para onde ele vai, e se preparar para o choro de um insucesso ou para a conquista de uma nova habilidade. 

Coisa que ele não faz é desistir de brincar. Às vezes reluta em dormir porque parece temer não acordar. Vai cerrando os olhos aflito pelo desaparecimento neles das imagens das brincadeiras de que seu mundo esteve cheio. 

Vocês deviam conhecê-lo. É tão fácil fazê-lo rir. E é tão mágico. Há mais dentes ali do que possa contar nossa vã odontologia. E vem sendo tão fácil chorar. Sua alma sente que pode voar, mas a gravidade imanta. 

Ingrid, ele vem me ensinando a não pensar muito. Existe uma urgência de pular que me empurra, me convoca. Joyce, ele tem uns trejeitos de rir que me desarmam. Forja Chaves para o meu castelo abrindo portas que nem sabia estarem ali. Na Sombra do que ele revela, destrói as teias de aranha e espirra as poeiras para longe. A agitação dele é tamanha, Ana, que quem me vê  o protegendo pensa que tenho a calma feito tinta impregnada na pele. É o meu quartzo, Artur, derramado por Deus em nossos braços, pequeno Serafim. Cá entre nós, brincar cansa, dói as pernas, exige trapaça com a idade. As assimetrias que já me doem, Ivis, pedem repouso de vez em quando. É, então, que o vigio distante, e esperanço que as crianças acolham sua diferença. 

Quando a lógica de tudo o que acreditávamos ser relação efetiva faz água, o que faz com que abandonemos o barco e nademos juntos, e pulemos juntos, e procuremos juntos o caminho de volta para casa, para os outros, para os nossos?

Ele sabe que sou dele. A mão levanta para segurar a minha como a de ninguém. Já tiveram o prazer de estar à deriva no meio do infinito mar, com alguém que ama? Eu já. 

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